sexta-feira, 19 de agosto de 2016

O Normal e o Patológico

Não! Não se trata de um homem "anormal" vestido de
mulher, que se esqueceu de fazer a barba! Trata-se de
uma mulher biológica mesmo. Harnaam Kaur, 23,
modelo, sofre de hirsutismo, um distúrbio fisiológico
-hormonal que
faz nascer barba em mulheres.
O grande problema da psiquiatria e da psicologia clínica está justamente em delimitar a fronteira entre o que é "normal" e o que deve ser considerado "patológico" na pessoa humana, ou seja, quais são os limites entre "saúde mental" e "doença mental".

Historicamente, essa fronteira não tem sido delimitada por fatos reais e objetivos, mas por crenças, valores e tradições vigentes numa dada sociedade, em determinada época e local. Se a pessoa não preencher os requisitos de "normalidade" ditados pela “ordem instituída” será considerada louca, delinquente ou as duas coisas juntas, por mais que seja capaz de passar em todos os testes de inteligência e lucidez a que seja submetida.

Ser normal nada mais é, portanto, do que seguir a “norma” de conduta preconizada pela sociedade, por mais maluca, estapafúrdia e fora de propósito que seja essa norma. Da mesma forma, basta afastar-se do cumprimento das normas vigentes para alguém ser considerado não-normal ou anormal.

A regra é simples: você é "normal" quando sua conduta corresponde aos padrões e expectativas da sociedade. Qualquer conduta "desviante" desses padrões remete você para a ala "patológica" da sociedade, transforma você em delinquente, por descumprir a norma, ou em portadora de “doença mental", por não ser mentalmente capaz de identificar e cumprir a norma ou não conseguir manter-se “ajustada” a ela.

Não adianta você declarar, em sã consciência e no total domínio da razão, que entende muito bem as coisas e que sabe muito bem se virar na vida. Para a sociedade, qualquer pessoa que apresente qualquer conduta “desviada” das normas não está pensando direito, porque, se pensasse direito, não pensaria da forma que está pensando, nem agiria de modo contrário ou afrontoso em relação a essas normas. Contra-argumentar, aqui, é uma tarefa completamente inútil. É uma queda de braços, antecipadamente perdida, do indivíduo contra a sociedade, por mais lucidez, argumentos e fatos que ele apresente em sua defesa. Mais ou menos o que Galileu passou ao afrontar a inquisição, representante suprema da ordem sociopolítica da sua época, negando que a terra não era o centro do universo, como então se pensava.

Nas últimas décadas, os rótulos psiquiátricos e psicoclínicos veem sendo exaustivamente bombardeados e denunciados como instrumentos de repressão, que visam essencialmente “devolver” os indivíduos sociodivergentes (os anormais...) ao convívio social entre pessoas normais, isto é, aos padrões de conformidade às conduta "oficialmente" aceitas pela sociedade.

A Noite Estrelada, óleo de 1889, de Vincent Van Gogh, gênio
considerado portador de grave transtorno mental  
Mas ainda que rotular alguém de delirante, histérico ou paranoico tenha deixado de ter o peso institucional que tinha há cem anos, continua ainda a ter efeitos devastadores na vida das pessoas pois a doença (ou seja, a anormalidade) não deixou de existir: apenas passou a ser tratada de outras formas.

O conceito de “normal” continua sendo sinônimo de “pequeno-burguês”, assim como pequeno burguês continua sendo sinônimo de cidadão bem comportado e bem ajustado aos dispositivos sociais de controle. Em pleno século XXI, essa normalidade que é sinônimo de ajustamento aos padrões vigentes não passa de uma grosseira caricatura “pequeno-burguesa” do ser humano.

Normalidade, no sentido clínico do termo, só faz sentido quando é descrita como a capacidade responsiva/adaptativa do indivíduo frente às demandas internas e externas que recebe o tempo todo. Nessa perspectiva, só podemos falar de conduta não normal quando um indivíduo responde inapropriadamente às suas diversas demandas existenciais, colocando em risco a si próprio e/ou às outras pessoas.

A saúde ou a doença mental não está no estrito cumprimento das normas dos dispositivos de controle, mas nos inumeráveis arranjos dentro do jogo de interações entre os indivíduos. Saúde mental não pode nunca ser vista como um dado estático do perfil de cada indivíduo, mas como uma coleção de “instantâneos”, dentro desse processo altamente dinâmico no qual uma pessoa vai se adaptando ao mundo, transformando-o e atribuindo-lhe significado, na medida em que ela própria se transforma.

Essa, é claro, não é a abordagem predominante e muito menos a abordagem mais aceita por uma grande parcela do mundo clínico. Se consultados, a maioria dos profissionais de saúde mental vão dizer que qualquer pessoa que não seja capaz de se adaptar às normas de conduta da sociedade possui, sim, algum tipo de distúrbio mental e que, portanto, deve ser “tratada”.

Dessa forma, “ser normal” continua implicando única e exclusivamente em seguir as normas e obedecer cegamente os dispositivos de controle da sociedade. Qualquer “desvio de norma”, seja lá que norma for, torna o indivíduo não-normal, ou seja, doente, delinquente ou as duas coisas juntas.

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