segunda-feira, 8 de agosto de 2016

Quem é você para nos julgar?

Os fariseus eram um grupo social existente entre os judeus nos tempos bíblicos que se caracterizava especialmente pela total falta de modéstia e de autocrítica. Consideravam-se superiores em tudo, demonstrando excesso de orgulho e soberba em todas as suas relações comunitárias. Na sua neura de perfeição moral, eles oravam (?) a Deus agradecendo por pertencerem a um grupo tão especial e seleto de pessoas, uma elite da época em todos os sentidos, e não terem sido nascido nem gentio, nem plebeu, nem mulher. Traços desse comportamento pedante e presunçoso podem ser vistos em Lucas (18:11): "o fariseu, de pé, assim orava consigo mesmo: ó Deus, graças te dou que não sou como os demais homens, roubadores, injustos, adúlteros, nem ainda como este publicano"...

O fato mais contundente, entretanto, na conduta farisaica é que, na prática, os membros desse grupo eram exatamente o oposto do que apregoavam em suas falsas e surradas "lições de moral e de bem-viver". Costumavam ser os piores elementos, os que mais ofendiam e transgrediam no dia-a-dia as regras mais elementares de convívio social. O discurso farisaico é apenas o grande disfarce para a perniciosa ação farisaica.

Os fariseus de todas as épocas não se consideram, nem se permitem, ser gente. Como se consideram "ungidos da graça divina", encastelam-se nos seus rígidos princípios de conduta moral que os outros - não eles - devem seguir. "Escolhidos por Deus", eles mesmos não necessitam de nenhuma norma de conduta, pois não erram, não têm desejos, não sonham e não vivem fantasias como qualquer mortal.

Desde os tempos bíblicos, o farisaísmo tem sido um dos maiores obstáculos a um mundo mais justo, amoroso e acolhedor para todos os seres humanos. Um mundo de justiça e igualdade, sem qualquer tipo de distinção de raça, classe social, gênero ou do que for. 

Os fariseus não desapareceram. Continuam ativos em sua cruzada de "vigilância moral" - dos outros. Com sua "moral de fachada", vigiam e espreitam todo mundo, o tempo inteiro, por trás da sua máscara de falsa beatitude. São o olho que julga, que exclui, que pune e que violenta qualquer pessoa que, a critério deles, esteja fora dos padrões de conduta moral que eles defendem, ainda que não os pratiquem.

Quando vejo uma pessoa transgênera armarizada, sofrendo, às escondidas, sem coragem de revelar ao mundo a sua verdadeira identidade de gênero; quando leio os relatos pungentes de pessoas com as quais me identifico plenamente falarem do sofrimento incompreensível e atroz, pelo simples fato de se recusarem a pertencer ao mais farisaico dos gêneros - o masculino - seja porque motivos forem... Enfim, quando nos percebo desconfortáveis em nosso pleito, limitadas em nossas confissões, incapazes de esboçar um sorriso em dia claro, tendo que nos refugiar nos "armários" da vida ou nos esgueirar pela noite, feito fantasmas, para ter uma hora de realização pessoal... ...Eu penso nessa moral farisaica - e nos praticantes dela - que lança sobre nós o seu olhar reprovador e nos submete à tortura da autonegação.

Que moral é essa? Que credenciais de lisura e respeito nos oferecem os seus "dignos" representantes? Malas entupidas de dinheiro arrancado com total má-fé de gente simples e de boa-fé? Fachadas de respeitabilidade, com bigode, terno cinza, gravata preta, óculos de aro e face "carregada" de pudor - ocultando comportamentos cínicos e hipocrisias de toda ordem? É essa gente que nos obriga a ter vergonha de nós mesmos, a não nos revelar, a nos mantermos como "não-guéns" nesse mundo. 

Sexualidade é assunto privado: tirem suas mãos sujas do meu corpo, que a única coisa que realmente me pertence nesse mundo. Dinheiro público é assunto público: tirem suas mãos sujas dos recursos que pertencem a toda a comunidade e não apenas a um grupo de fariseus autoescolhidos por Deus... Eles, os que nos vigiam e punem, querem todos os espaços do mundo, sobretudo os espaços e os direitos que nunca lhes pertenceram.

Nós queremos apenas o direito de sermos quem a gente é.

(Leticia Lanz)

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