domingo, 16 de outubro de 2016

De quem é a culpa da hiper sexualização, estetização e objetificação da mulher transgênera

Mesmo que ainda seja um dos nossos grandes não-ditos, a crença predominante dentro do gueto transgênero é de que toda mulher trans tem que ser bonita, gostosa e sexy, não importando que ela seja ou não uma trabalhadora do sexo.

Historicamente, beleza e forma física, com base nos estereótipos mais opressivamente machistas de feminilidade, são os parâmetros principais, senão os únicos, tanto para a constituição da subjetividade da mulher trans, quanto para a avaliação da sua performance geral. E as mulheres transgêneras, mesmo muitas daquelas que se dizem politicamente engajadas, tudo que fazem é ceder passivamente a essa invisível e permanente pressão da sociedade para o "enquadramento" das mulheres no modelo machista de feminilidade.

Característica determinante da sociedade patriarcal, essa forma totalmente erotizada de se conceber o feminino, que sempre atingiu em cheio a mulher biológica, estabelece que a fêmea deve submeter-se obedientemente às fantasias sexuais do macho. O resultado é a completa sexualização, estetização e objetificação da fêmea que, apesar dos sensíveis avanços da mulher, continua a exercer desmedida opressão e violência sobre o corpo da fêmea, tentando moldá-lo de todas as formas para transformá-lo no corpo estereotipado de mulher.

Esse mesmo fenômeno atinge as mulheres trans, de maneira ainda mais drástica e severa, amplificando desmesuradamente o seu permanente desafio de se expressar na sociedade dentro da categoria feminina de gênero, transgredindo para isso abertamente o enquadramento que lhes foi imposto, ao nascerem, na categoria masculina, em decorrência do seu órgão genital de macho.

Começa aí o drama da maioria das mulheres transgêneras: o pênis. O corpo, como eu exaustivamente mostrei no meu recente livro “O Corpo da Roupa” (www.transgente.com.br), foi reduzido a um porta-identidades, devendo ajustar-se inteiramente à roupagem identitária que a sociedade lhe impõe. E o primeiro item da norma binária de gênero estabelece que “corpos masculinos” têm pênis e “corpos femininos” têm vagina.

Essa “corporificação” do gênero torna-se, assim, a primeira grande dor-de-cabeça de uma mulher transgênera: o que fazer para lidar com a presença “constrangedora” de um órgão genital de macho onde, segundo o dispositivo de gênero da sociedade patriarcal machista, “deveria” haver um órgão genital de fêmea?

A solução clássica para a presença constrangedora do pênis no que seria um corpo de mulher - solução fixada por “experts” da medicina na segunda metade do século passado e que se transformou no “sonho de consumo” de boa parcela da população trans MtF – é a remoção do pênis, com a confecção simultânea de uma neovagina no lugar dele, usando o próprio material que seria descartado.

Defendo inteiramente o direito de qualquer pessoa modificar o seu corpo como bem entender. O corpo é território individual e sobre ele apenas a própria pessoa pode opinar e decidir sobre o que deve ou não fazer. Eu mesma fiz modificações corporais que julguei importantes para o meu bem-estar. Mas será que o que faz uma mulher é uma vagina?

É óbvio que ser uma mulher é algo muito mais complexo do que simplesmente “ter uma vagina” no lugar de um pênis. Diante da complexidade social, política e cultural do que é “ser mulher”, ter uma vagina é algo que chega a ser apenas cosmético: há coisas muito mais expressivas e representativas do ser mulher além de um simples órgão genital.

Apesar disso, dobram quarteirões as filas, no SUS, de pessoas transgêneras MtF aguardando a vez de fazerem a sua cirurgia. Grande parte dessas pessoas já estão esperando há anos, algumas há mais de uma década.

Mas será que todas essas pessoas realmente precisam e desejam mesmo realizar tal modificação corporal? Ou será que estão apenas embaladas pela crença estapafúrdia, abonada pela opinião de muitos profissionais de saúde, de que irão se tornar “mulheres completas” após a cirurgia?

Uma coisa é fazer a cirurgia de reaparelhamento genital, como qualquer outra cirurgia plástica, para se sentir melhor consigo mesma. Outra coisa é ser compelida, para não dizer "obrigada", pela ordem vigente, a fazer essa cirurgia, tal como acontece no Irã, só que de maneira aparentemente mais branda e “democrática”.

A neovagina, infelizmente, é apenas um dos itens de produção da mulher transgênera, que deve ser, por definição, plenamente ajustada às fantasias sexuais do macho da sociedade patriarcal em que vivemos.

O torneamento do corpo, a “feminização” do rosto e a modificação da própria fala fazem parte de um extenso elenco de providências consideradas imprescindíveis e inadiáveis, que se tornam totalmente obsessivas na vida de uma trans MtF. Além, é claro, da manutenção da sua permanente juventude, já que, nessa sociedade machista, mulheres idosas são consideradas praticamente como homens, em termos de despertar o interesse sexual dos machos.

Mas de quem é realmente a culpa dessa hiper sexualização, estetização e objetificação da mulher transgênera? Apenas da opressiva sociedade patriarcal machista ou também das próprias pessoas trans que, por não conseguirem resistir à pressão, acabam cedendo aos apelos de adequação estética às preferências de “machos-alfa”?

E não devemos excluir mesmo a possibilidade de que muitas mulheres trans tentem realizar, em si mesmas, o ideal de “mulheridade” da sociedade patriarcal, como se se apaixonassem pela mulher em que se transformam. Essa é a tese da “autoginecofilia”, altamente polêmica e exaustivamente rechaçada, dentro do meio transgênero, mas que é defendida não apenas por profissionais da medicina, como o psicólogo J. Michael Bailey e da psicologia como também por muitas pessoas transgêneras de projeção, como a sexóloga trans Anne Lawrence.

A verdade é que a sociedade, tendo a mídia como sua grande representante, prestigia excessivamente mulheres transgêneras plenamente sexualizadas, estetizadas e objetificadas de acordo com os padrões de desejo do homem. "Modelos" transgêneras que encarnam e exaltam a “beleza feminina” estereotipada gozam de um enorme prestígio na mídia, assim como anedóticos concursos de beleza “trans” são extensamente apoiados e divulgados pela mídia, constituindo a prova de que mulheres trans-objeto têm muito mais destaque e reconhecimento na sociedade do que prosaicas mulheres trans-comuns. Mesmo que esse prestígio todo, segundo o depoimento de muitas das próprias modelos incensadas pela mídia, não represente maior aceitação da sua condição transgênera pela sociedade em geral, especialmente pelos homens, que ainda assim resistemem aceita-las como mulheres.

Ao contrário, mulheres transgêneras sem grandes atrativos de beleza, fora da estética “feminina” estereotipadas e que nem de longe constituem objeto de desejo sexual, são ostensivamente invisibilizadas pela sociedade e pela mídia, mesmo quando merecem destaque pelo seu desempenho impecável em importantes funções sociais. 

Mas a velhice consegue o feito de nivelar mulheres transgêneras especiais e comuns no mesmo patamar de esquecimento e abandono. Ao envelhecerem, todas, bonitas ou feias, são praticamente anuladas como seres humanos, o que faz com que muitas delas voltem inclusive a viver como homens.

Qualquer que seja o vetor predominante nessa absurda sexualização, estetização e objetificação da mulher transgênera, cabe em grande parte a nós, mulheres transgêneras, realizar uma reflexão profunda sobre o que deve ser a nossa plena integração na sociedade e de que forma essa integração deverá ocorrer. Certamente não será através do esforço desesperado para nos transformarmos em modelos de beleza feminina, altamente sexualizadas e desejadas pelos homens.

A inclusão, o respeito e a dignidade que desejamos e defendemos vai muito além de uma execrável submissão passiva a fantasias sexuais machistas.

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