quinta-feira, 17 de novembro de 2016

A ditadura do sexo sobre a dura questão do gênero, dentro (e fora) do gueto trans

Não é tarefa fácil, para uma pessoa trans, afirmar-se numa outra profissão ou estilo de vida quando o imaginário popular, que já vem modelado pela ideia de que travesti é sinônimo de prostituição e de sexo promíscuo, só encontra pela frente sinais que confirmam isso e nenhum sinal, ou praticamente nenhum, que ao menos sugira que travestis possam atuar, como realmente atuam, em qualquer área de atividade humana, como qualquer pessoa cis.

Das milhares de páginas, grupos e perfis individuais de pessoas trans nas redes sociais, além de outros milhares de sites trans espalhados pela internet, pode-se contar nos dedos os que não se dedicam a sexo, prostituição e pornografia, assim como chega a ser astronômica a diferença do número de acessos, membros e seguidores entre esses últimos, com pouquíssimos frequentadores, e os demais, com séquitos de milhões de pessoas.

Muitas pessoas trans, especialmente a boa maioria de pessoas trans que não se dedica à prostituição, sentem-se permanentemente constrangidas e acuadas diante da associação instantânea que a população faz entre a sua identidade de gênero e a sua profissão e estilo de vida. Assim, embora nunca tenham sequer cogitado de participar do mercado do sexo (muitas pessoas trans são, inclusive, assexuais), para a população em geral se são pessoas trans devem ser prostitutas e praticar “sexo selvagem”, ativa e passivamente, com direito a todos os tipos e variações possíveis e imagináveis de posições e preferências sexuais.

Essa imagem de praticantes de loucuras sexuais não só domina o imaginário coletivo como é conscientemente mantida e estimulada por extensos segmentos de pessoas trans. Não é à toa que as práticas sexuais têm uma centralidade quase absoluta nos trabalhos acadêmicos e reportagens que descrevem a vida das pessoas trans. Por outro lado, a transgressão das normas de conduta de gênero, que está na raiz de todo o estigma, patologização e judicialização da condição transgênera na nossa sociedade, fica totalmente obscurecida em favor da ênfase total na atividade sexual desvairada, matéria que não devia ser nem ao menos levantada, uma vez que a atividade sexual é questão íntima de cada pessoa, jamais devendo ser tratada como questão de ordem coletiva.

O resultado dessa abordagem amplamente erótica-sexual e sexista da população transgênera, é a ditadura do sexo sobre a dura questão de gênero, dentro (e fora, também, é claro) do gueto trans. Essa ditadura pode ser, inclusive, terrivelmente cruel e hostil às pessoas trans que se revoltam contra ela. Certa vez, uma liderança do chamado “movimento organizado”, que pretende representar travestis e transexuais no Brasil, disse que eu não teria direito a voz dentro do gueto trans porque eu nunca tinha frequentado a “pista”, ou seja, porque eu nunca havia me prostituído. Diante do lugar de fala que conquistei dentro do gueto, e do volume de textos e palestras que tenho feito desde então, é óbvio que eu não levei em conta uma colocação tão estúpida, tola e mesquinha.

É evidente que interessa às forças contrárias ao progresso dos direitos humanos a manutenção da imagem pública das pessoas trans como prostitutas devassas e promíscuas, que constituem permanente ameaça à tal “família doriana”, essa angelical e inteiramente abstrata entidade que eles defendem de unhas e dentes. Quanto mais as pessoas trans forem vistas pela sociedade em geral como sinônimo de degradação moral, mais força terá o estigma que paira sobre a condição transgênera, que interdita, limita e freia tanto o resgate dos nossos direitos civis quanto a nossa absorção plena, geral e irrestrita dentro da sociedade em que vivemos.

A maioria das pessoas trans, inclusive que militam na pista, sonha em viver na companhia de alguém, em constituir um lar, em ter filhos, enfim, em integrar-se completamente na vida da comunidade. Esses são sonhos que representam direitos inalienáveis de todo ser humano, que hoje nos estão sendo ostensivamente confiscados, até mesmo dentro do próprio gueto, e que os setores reacionários da sociedade desejam restringir mais ainda. 


Um comentário:

Lilian disse...

Perfeito, por estas e por outras quem esta fora deste estereótipo, no caso da prostituição, é procurada como um caso exepcional, onde pessoas trans como eu são procuradas com frequencia pela mídia local para divulgar aquela "exeção".
Por um lado é bom para combater a rotulação e mostrar que nem tudo está perdido, mas por outra é triste por confirmar a ideia reinante no incosciente coletivo da sociedade.