sexta-feira, 4 de novembro de 2016

A lógica do "ou-ou"

Nada mais ingênuo e simplório do que classificar as pessoas e tirar conclusões a respeito delas com base na lógica do “ou-ou”: ou é homem ou é mulher; ou é “ativa” ou é “passiva”; ou é hétero ou é homo; ou é de direita ou é de esquerda; ou é crente ou é ateu; ou é deus ou é o diabo; ou contra ou a favor, ou bom ou mau, ou certo ou errado, etc., etc., etc.

Na cabeça da pessoa que pensa com base no “ou-ou” as coisas existem aos pares. Para ela, tudo no mundo está sempre dividido em duas únicas possibilidades, opostas e irreconciliáveis. A introdução de uma terceira, de uma quarta ou de uma enésima possibilidade parece desorganizar e desorientar inteiramente o mundinho binário-maniqueísta da pessoa “ou-ou”.

Vista a partir da lógica do “ou-ou”, a vida pode parecer simples, fácil e objetiva, coisas que a vida obviamente não é. A vida é muito complexa para caber apenas e tão somente em duas categorias contrárias uma da outra. Parafraseando Shakespeare, haverá sempre muito mais coisas entre as duas extremidades tidas como opostas do que pode supor nossa vã filosofia. É completamente falso, artificial e forçado enxergar o mundo divididinho em dois: bons e maus, homens e mulheres, pecadores e virtuosos, ativos e passivos, e o escambau.

Além de pura e simples preguiça mental, o que leva uma pessoa a adotar a lógica simplista e simplória do “ou-ou” é o medo de ter que fazer continuamente novas leituras da realidade e das pessoas que a cercam. É muito mais fácil “rotular” previamente, tudo e todos, de forma cabal e definitiva, de tal maneira que elas fiquem gravadas para sempre no pensamento como entidades “positivas” ou “negativas”, sem que a pessoa tenha qualquer trabalho de reavalia-las novamente, cada vez que as encontrar. Por isso mesmo, o teatrólogo e pensador inglês George Bernard Shaw disse que a única pessoa sensata que ele conhecia era o seu alfaiate. Todas as vezes que ia fazer uma roupa nova, o alfaiate tinha o cuidado de lhe tirar medidas novas, ao passo que as outras pessoas queriam sempre medi-lo pelas medidas antigas...

A lógica do “ou-ou” leva as pessoas a fazer o oposto do alfaiate, ou seja, a adotar “medidas definitivas” para todas as pessoas, coisas e situações que as cercam, como se tudo e todos fossem imutáveis, como se nada mudasse nesse mundo. Como se as coisas, as pessoas e as situações fossem sempre as mesmas, independentemente das circunstâncias, em permanente mutação, de cada momento e lugar.

O outro nome de “medidas definitivas” é preconceito, que é a maneira simplista de se conceber as pessoas e as coisas “a priori”, sem ter tido nenhum contato com elas. O racismo, esse preconceito besta e patético (se bem que chamar preconceito de besta e patético é redundância...) que divide a humanidade em brancos e “os outros” (negros, latinos, asiáticos, etc.), é filho dessa lógica boçal e castradora do “ou-ou”, assim como a transfobia, a homofobia, a misoginia, a xenofobia, e todos os tipos de desgraças que assolam diariamente a humanidade.

Tudo por incapacidade de pensar além do dois. Tudo por preguiça mental de pensar cada pessoa e cada momento da vida como casos únicos, em vez de rotular tudo e todos por antecipação, dentro da lógica absurda do “ou-ou”.

Pode ser que, na natureza, a dupla de opostos funcione e até nos propicie belos momentos poéticos como o clássico “ou isto ou aquilo”, de Cecília Meireles (ou se tem chuva e não se tem sol ou se tem sol e não se tem chuva..., lembram?). Mas mesmo nos pares de opostos existentes na natureza, como dia e noite, verão e inverno, sol e lua, a oposição nunca é rígida e definitiva, como querem os adeptos da lógica “ou-ou”. Afinal de contas, até hoje ninguém sabe exatamente a que horas a noite começa, pois ela começa sempre quando o dia termina. E o dia, naturalmente, começa quando a noite termina...

Assim, em vez de existir polarização e contraste, entre os opostos existe na verdade uma total continuidade, de tal maneira que um “se torna” o outro e o outro “se torna” o um ou, dito de outra forma, um não existe sem o outro. Não existe bruxa sem fada, alto sem baixo ou alegria sem tristeza. Ou seja, em vez de pares de opostos, contrários e irreconciliáveis, eles são pares de entidades complementares, que fluem entre si de um extremo ao outro, assumindo inúmeros valores ao longo desse percurso.

Mas, para ver e compreender isso, é preciso superar a lógica cartesiana do “ou-ou” alcançando a lógica dialética de Heráclito, aquele filósofo grego que dizia que nunca se pode tomar banho duas vezes no mesmo rio (porque o rio nunca é o mesmo).

Em vez de ver as pessoas, as coisas e as situações, instalados dentro de um mundo previamente divididinho, certinho e “imexível”, é preciso aprender a ver a vida sem preconceitos, fluindo sempre, de um extremo a outro, nesses absurdos pares de opostos que somos doutrinadas para aceitar como verdades absolutas e irrefutáveis.

Ninguém é bom ou mau por natureza: entre o bem e o mal existe uma infinidade de possibilidades que são duramente repelidas e massacradas quando pensamos o mundo de maneira “ou-ou”.

Assim como entre “mulher” e “homem” existem infinitas possibilidades do ser, que são excluídas, reprimidas e recalcadas por causa da bobagem de se imaginar o mundo dentro da lógica restrita, preguiçosa e burra do “ou-ou”.

2 comentários:

Unknown disse...

Nessa historia toda, a unica coisa que é realmente binaria é o corpo, o modelo do hardware, XX ou XY.
O resto é abstrato é software, não podemos analisar ele em si, apenas como ele interage com o hardware com o corpo.
Eu tenho um hardware XY, vem com um computador muito bom. Essa é a unica coisa concreta em mim, que pode ser medida. Quem controla esse hardware sou eu. Alma, firmware, ego, determinada região do cérebro, tabela de registros, não importa o nome, todos significam a mesma coisa: quem você é. Eu nasci com um firmware feminino e emulei um masculino por 36 anos. Meu corpo é modelo XY, e sempre vai ser, DNA não se reescreve e pronto.
Me vejo assim, firmware feminino com hardware masculino em processo de customização. Para ajudar trabalho com engenharia e adoro isso. Se for para definir como algo binário como fico então? é homem ou é mulher? Quando me perguntam isso eu respondo: Primeiro vamos escolher qual o critério de avaliação? software ou hardware?
Para mim gênero, sexualidade, vaidade, e tudo mais que define a gente, pode ser estudado como vetores. Possuem modulo direção e sentido e interagem entre si. Ja acho esse tipo de abordagem uma especie de "redução" da complexidade e beleza do todo. Querer reduzir ao binario chega a ser um crime.
Somos seres com um software complexo com infinitas combinações, utilizamos um hardware belíssimo que, apesar de possuir dois modelos, é único para cada ser. O sistema binário funciona muito bem na eletrônica onde tudo é concreto. Mas para nos só serve para definir o modelo do hardware, e mesmo assim com ressalvas.

Letícia Lanz disse...

Oi Mariza,
Já foram descobertos muitos outros modelos de hardware, para usar a sua nomenclatura: XXY, XYXY, etc. Até a fábrica da natureza já mostrou que sua linha de produtos genéticos não vem em duplas...