quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Incoerência, burrice e má fé parecem não ter limites

Nada me agride mais do que alguém me destituir arrogantemente das funções sociais que eu mais prezo nesse mundo - marido, pai e avô - me renomeando, por conta própria, como esposa (pior ainda, como “marida”), mãe (ou “pãe”) e avó.

O objetivo claro e inequívoco desse expediente fascista é me manter enquadrada na matriz identitária (podre) em vigor na sociedade (ainda mais podre), de forma a reduzir a tensão, incerteza e ansiedade da pessoa ao se relacionar comigo. 


Todo mundo precisa ser classificado e permanecer dentro de "caixinhas identitárias", socialmente inteligíveis, para não criar confusão no processo de identificação e leitura por parte dos outros. É para isso que carregamos "identidades". Elas funcionam exatamente como rótulos nos produtos expostos nas prateleiras do supermercado. Sem os rótulos, você corre o risco de comprar massa de tomates e, ao abrir a lata, descobrir que se tratam de ervilhas.
Essa é a justificativa para o uso de rótulos: facilitar o reconhecimento e impedir a confusão entre diferentes elementos. No caso de latas e garrafas no supermercado, sou francamente a favor do uso de rótulos. Mas sou totalmente contrária em se tratando de pessoas humanas, como já expus várias vezes (veja, por exemplo, meu artigo http://leticialanz.blogspot.com.br/2016/10/dizer-que-alguem-e-homem-ou-e-mulher.html). 

- Que é isso, Letícia? Por que essa revolta? Eu estava apenas tentando respeitar as suas escolhas...

Que me respeitar o caralho! A pessoa
está apenas resguardando a legitimidade do perverso sistema binário cis-hétero em vigor. Eu que me foda! E o pior que ela faz isso quase sempre inocentemente, de forma totalmente inconsciente e mecânica.

Faço questão de afirmar pra todo mundo que o meu objetivo nunca foi me enquadrar como mulher dentro no dispositivo binário de gênero, saindo da gaiola da masculinidade para entrar (numa fria maior ainda...) na gaiola da feminilidade.

Eu me apresento e vivo socialmente como mulher. De fato, meu corpo, minha aparência e o meu desempenho correspondem tão bem aos estereótipos vigentes de mulher que para muitos é um choque descobrir que eu nasci macho. Por sinal, esse foi o ponto central da minha decisão de viver como mulher: sempre tive muita dificuldade de passar visualmente como homem.

A questão é que, sendo macho de nascimento, além de não ser autorizada a ser mulher, não sou tampouco autorizada nem a ser marido, nem pai, nem avô, funções com reserva de mercado para personagens masculinos, embora isso seja mais uma grande mentira institucional já que, em 47% do lares brasileiros, as mulheres são mães e pais ao mesmo tempo, pois os homens simplesmente sumiram.

Outra coisa que me agride tremendamente: sua mulher “virou” lésbica? Vai cagar, pô! A gente vive junto apenas para fazer sexo? Que visão mais cissexista do relacionamento de duas pessoas! Faço questão de dizer que o sexo que eu faço com a minha mulher é inclassificável: o que um casal faz na cama é questão íntima do casal. Por favor, reservem as suas classificações para seus lotes de porcos e galinhas. Não para pessoas humanas.

Estou cansada de dizer que eu não sou homem, nem mulher, nem trans: eu sou Letícia Lanz, uma criação de mim mesma. Por favor, me respeitem: quero ser reconhecida apenas como gente.

Agora, o que mais me decepciona nessa história de rotulação é o fato de certas pessoas que se apresentam como “mulheres trans” serem as primeiras a se empenhar, por todos os meios possíveis, em legitimar o mesmo dispositivo binário de gênero responsável pela sua exclusão e rotulação.

Como é que uma pessoa trans pode defender incondicionalmente o sistema binário que não a reconhece (e nunca irá reconhecê-la), que a violenta, moral e fisicamente, que a classifica de doente e/ou de delinquente em virtude da sua não conformidade com as normas de conduta gênero?

Como é que pode combater os efeitos colaterais de um sistema que reconhece e legitima duas e somente duas categorias de gênero: o homem e a mulher, e assim mesmo o homem e a mulher "originais de fábrica", nascidos respectivamente macho e fêmea, como exige o figurino cisgênero? 

Ao renderem-se, não apenas à normatização dos corpos, mas também à normatização das funções sociais de cada indivíduo em função da identidade que lhe foi atribuída ao nascer, essas pessoas trans simplesmente compactuam com o sistema que supostamente estão combatendo e ao, na verdade, aderem literalmente de corpo e alma.  

Como podemos lutar por direitos, pela desjudicialização e despatologização da condição transgênera se as próprias pessoas trans reconhecem, abonam, legitimam e lutam desesperadamente para serem enquadradas e aceitas dentro do próprio sistema binário que as mantém fora dele, como abjetas pessoas fora-da-lei?

Definitivamente, incoerência, burrice e má fé parecem não ter limites.

Um comentário:

Unknown disse...

Adorei o texto. Informal. Direto e sem rótulos. Inclassificável. Gostei do... Sou L.L, uma criação de mim mesma. 👏👏👏👏