segunda-feira, 21 de novembro de 2016

O que é que mais chama a atenção na palavra “transexual”?

O que é que mais chama a atenção na palavra “transexual”? O “trans” ou o “sexual”? Naturalmente que é o sexual. E a intenção do autor, quando quando criou a palavra, no início da década de 1950, foi exatamente dar ênfase ao sexo da pessoa, representado pelo órgão genital e características sexuais secundárias, como mamas. É importante lembrar, também, que, naquela época, a palavra transexual se referia exclusivamente a machos que desejavam transicionar para a condição de fêmea; não há nenhum registro referente a fêmeas que desejavam transicionar para condição de macho.

O famoso médico austríaco-americano Harry Benjamin foi o responsável pelo uso da palavra “transexual” para designar um transtorno mental estudado por ele, até hoje listado no CID (Classificação Internacional de Doenças), que consistia, segundo esse médico, na rejeição do sexo de nascimento pelo indivíduo portador do distúrbio.
É importante ressaltar que, naquela época, ainda não havia sido introduzido o conceito de “gênero” e a crença geral da medicina, até hoje bastante arraigada na cabeça de grande parte dos profissionais de saúde, era que o sexo genital determinava o comportamento sociocultural da pessoa. Isto é, um macho já nasce homem e uma fêmea já nasce mulher graças a um inexorável determinismo biológico da natureza.

Nesse caso, alguém que, tendo nascido macho rejeitasse a condição social de homem, insistindo em expressar-se socialmente como mulher, devia ser portador de um distúrbio, que o Dr. Benjamin chamou de “transexualismo” e cuja “cura” dependia de reposição hormonal, cirurgia de reaparelhamento genital e outras cirurgias de natureza estética, procedimentos destinados basicamente a “transformar” indivíduos machos em indivíduos fêmeas.

Embora se tratasse de um raciocínio extremamente primário, pois não é o corpo que determina o comportamento social como homem ou como mulher, a ideia de que o indivíduo portador de “transexualismo” tinha nascido no “corpo errado” e, que, portanto, a medicina deveria esforçar-se para lhe dar o “corpo certo”, embasou todos os estudos da época, particularmente os estudos do Dr. Harry Benjamin.

Com o surgimento do conceito de “gênero” pode-se compreender melhor a divisão que sempre existiu entre a natureza e a cultura. Enquanto a natureza era responsável por criar um organismo biológico, a cultura era responsável por produzir um membro da sociedade, devidamente treinado para exercer papeis e funções estabelecidos de acordo com o seu sexo genital.

O conceito de gênero veio, portanto, revolucionar todos os estudos relativos ao comportamento humano em sociedade, mostrando, de uma forma clara e objetiva, o que Simone de Beauvoir já havia antevisto em 1949, na sua obra O Segundo Sexo: ninguém nasce mulher (ou homem): aprende a ser. Enquanto sexo é uma herança biológica, gênero é um aprendizado social.

E sendo um aprendizado social, é fácil perceber que não há nenhuma vinculação direta entre o corpo que a pessoa tem e o gênero que ela expressa na sua vida em sociedade, uma vez que, do ponto de vista do gênero, não há nenhum determinismo biológico em jogo.

A introdução do conceito de gênero tornou obsoleto o conceito clássico de transexual, além de inteiramente conservador e reacionário. A ênfase não é no sexo, nem na mudança de sexo. A ênfase é no gênero. Compreendeu-se finalmente que qualquer pessoa pode perfeitamente expressar um gênero sem ter o sexo genital que “deveria corresponder” àquele gênero, em razão das normas da sociedade que estabelecem que, para se expressar como homem, a pessoa tem que ter um pênis, assim como para se expressar como mulher, tem que ter uma vagina.

O que a pessoa está transicionando não é necessariamente o seu sexo genital e as suas características genitais secundárias. O que a pessoa está transicionando é a sua identidade e a sua expressão no dia-a-dia da sociedade. Dessa forma, não é necessário mudar o sexo para se expressar como “outra pessoa”, como acreditava o Dr. Harry Benjamin e outros profissionais de saúde da década de 1950. Basta a pessoa mudar o gênero, ou seja, a maneira como ela se expressa na vida em sociedade.

Mas a introdução do conceito de gênero permitiu que a gente fosse ainda mais longe. Está óbvio que se o gênero é "aprendido" então ele pode ser "desaprendido" e "reaprendido", quantas vezes a pessoa desejar. Ou seja, se o sexo (ainda) é fixo, por mais alterações de natureza estética que a pessoa possa fazer a fim de corresponder aos estereótipos de gênero em vigor na sociedade,gênero é inteiramente fluído. E este último aspecto enlouquece, tanto os fundamentalistas religiosos quanto os fundamentalistas de gênero.

Quer dizer que uma pessoa pode mudar de gênero quantas vezes quiser ao longo da vida? Pode sim. Mas isso não significa nem que ela vá fazer isso automaticamente, como estilo de vida, nem que não vá encontrar nenhuma resistência. Talvez isso possa até acontecer num futuro mais distante, se houver esse futuro... Mas a realidade que sendo mostrada é que, em princípio, qualquer pessoa pode mudar o seu gênero, sim, a qualquer tempo. E se mais pessoas não mudam hoje em dia é devido à forma como o gênero é "ensinado" às pessoas, através de duríssimos mecanismos de repressão, vigilância e terrorismo. Aliás, se não fossem esses mecanismos autoritários, gênero nem existiria mais como uma categoria de classificação e controle dos indivíduos.


2 comentários:

Simone Santos disse...

O que me deixa na dúvida é, quando estou distraida, se escrevo com "s" ou "ss".

Letícia Lanz disse...

Se for em português, vc escreve com um "s" só, uma vez que na nossa língua o "esse" dobrado () representa o som [s] apenas em contextos intervocálicos (ex.: assar, isso, promessa, russo), e nunca em início de palavra ou depois de consoante. Com dois esses é a grafia de transsexual em inglês.