domingo, 22 de janeiro de 2017

A ultrapassada e indigesta ladainha essencialista do "quem é trans já nasce trans"

Tem pessoas trans, fundamentalistas de gênero, que ficam uma fera quando alguém diz que quer “virar” ou que “virou” trans. A crença dessas pessoas é que quem é trans JÁ NASCE TRANS o que significa dizer que, para elas, gênero é um atributo: a) biologicamente herdado; b) fixo e estável e c) que não pode ser mudado por vontade da própria pessoa.

Confesso que, vindo de pessoas trans, eu me espanto com esse discurso essencialista, em absoluta consonância com o discurso de setores ultrarreacionários da igreja católica e de evangélicos fundamentalistas, de que gênero É ALGO INEXORAVELMENTE DETERMINADO POR DEUS, antes mesmo do indivíduo nascer, QUE NÃO PODE SER ALTERADO EM HIPÓTESE NENHUMA POR SIMPLES VONTADE DA PESSOA. 


Isso quer dizer que nasceu macho, isto é, com um pênis, tem que ser homem, assim como nasceu fêmea, isto é, com uma vagina, tem que ser mulher. Nenhuma mudança é permitida pois é a determinação do Criador em pessoa. Nessa visão, só é possível ser homem TENDO NASCIDO MACHO como só é possível ser mulher TENDO NASCIDO FÊMEA. Nenhuma outra composição é permitida e, caso ocorra, será considerada GRAVE TRANSGRESSÃO, da lei de Deus e da lei dos homens. 

Ao par de defenderem esse besteirol, equivalente, como mostrei, às crenças mais esdrúxulas dos setores mais reacionários e retrógrados da sociedade, muitas dessas pessoas trans se consideram “autoridades” em questões de gênero, dizendo-se “plenamente afinadas” com o pensamento de feministas de peso como Judith Butler, Paul Preciado ou Marie Helene Bourcier, para quem gênero não passa de um discurso normatizador da sociedade, sem nenhuma base material ou vínculo com a biologia que, para essas pensadoras, também não passa de discurso.

Ora, é óbvio que uma posição não combina com a outra, pois são radicalmente opostas. Ou você admite a total flexibilidade e mutabilidade de gênero, defendida por Judith Butler, ou você defende a sua fixidez e imutabilidade. Ou essas pessoas estão se fazendo de bobas ou vou ter que dizer que não sabem nada a respeito de gênero. E assim era melhor calar a boca, para não passar vexame intelectual ou, pior ainda, contribuir com munição para os piores inimigos da população transgênera.

Mas as contradições não param aí. Se essas próprias pessoas tiveram que lutar (e ainda lutam) muito para alterar o que o pensamento essencialista considera como sendo a “vontade de Deus” e a ordem “natural” das coisas, transformando-se em pessoas completamente fora do dispositivo binário de gênero, porque se alteram tanto quando alguém usa um verbo de movimento (tornar-se, virar, transformar-se), preferindo considerar-se como “estruturas” desenhadas pela natureza e não como processos sociopolítico-culturais em permanente transformação?

Talvez a resposta seja simples e óbvia: essas pessoas não podem admitir que o desejo de transformação que as moveu em direção à transição de gênero seja apenas “desejo” e que, portanto, possa voltar a manifestar-se em suas vidas, quem sabe obrigando-as a percorrer o caminho inverso da sua atual transformação.

Recentemente, ouvi o depoimento riquíssimo e pungente de uma pessoa trans que fez o caminho de volta para a sua antiga identidade de gênero. A primeira coisa que a pessoa disse foi o quanto estava sendo hostilizada pela comunidade trans em virtude da sua decisão. A voz quase unânime era de que ela não “devia ser” uma pessoa trans “de verdade” pois, se fosse, isso jamais teria acontecido. A “comunidade” trans estava fazendo com a pessoa exatamente o que a comunidade cis fez no dia em que ela transicionou da primeira vez. Ou seja, o maldito essencialismo de gênero sobrevive e prospera não apenas no mundo cisgênero mas também, inacreditavelmente, dentro do próprio mundo transgênero.

3 comentários:

Unknown disse...

Olá, Letícia, tudo bem? Eu gosto do seu pensamento sobre não ter nascido homem ou mulher. Mas eu penso que a ideia de "virar" também é problemática uma vez que assume que nascemos isso e passamos a nos identificar como aquilo. Então acho que a ideia de autoconstituir-se (acho que essa palavra não existe) é uma boa saída pra esse impasse.
Beijos.

Sandra CA disse...

Muito bom !Letícia sempre maravilhosa!

Letícia Lanz disse...

Não há problema nenhum, querida, nascer macho e se identificar como mulher ou nascer fêmea e se identificar como homem. O problema é apenas o dispositivo binário de gênero que impede esse tipo de arranjo. GênVocê recebeu o livro? Gostaria muito de saber se você pôde dar uma olhada, se acha que pode haver algum interesse para a sua editora, de que forma e em quanto tempo isso poderia acontecer, etc., etc. Desculpe-me essas perguntas sem a gente ter nem ao menos conversado, mas é que a edição acabou de acabar e eu tenho que tomar a decisão quanto a assumir ou não uma nova edição, nos moldes atuais. Gênero é fluído, e não fixo como se fosse um "órgão" do corpo humano. E olha que até os órgãos humanos já podem ser mudados... "Virar" não é um verbo inconveniente de jeito nenhum. A pessoa pode se identificar com a mesma categoria de gênero pela vida inteira; nada impede que isso aconteça. Como pode mudá-la ao seu bel prazer.