sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

Nada vai me fazer voltar para a "normalidade"

Enquanto eu segui as normas, ou seja, enquanto eu fui “normal”, encontrei oportunidades de trabalho e fui reconhecida e respeitada, tanto pessoal quanto profissionalmente. A partir do momento em que eu decidi parar de seguir algumas normas, fui imediata e sutilmente privada da maioria dos meus direitos mais elementares como ser humano, como poder pertencer e participar de uma família ou ser legalmente reconhecida por um nome civil correspondente à minha identidade de gênero.

Quais foram as normas que eu parei de seguir? Foram as normas binárias de gênero, que arbitrariamente dividem, classificam e hierarquizam as pessoas de acordo com duas únicas categorias de pessoas - homem e mulher ou masculino e feminino –exclusivamente em função do órgão genital que cada qual traz entre as pernas ao nascer.

Aos 50 anos, com uma família formada há 25 anos, uma profissão consolidada e um lugar na sociedade, cavado a muito sangue, suor e lágrimas, resolvi que não iria mais representar uma personagem que nunca me representou. E desde então, não sou mais nem homem, nem mulher, nem trans: sou Letícia Lanz, uma construção de mim mesma.

Não posso dizer que sou mulher, por que algumas das funções sociais que eu desempenho no meu dia-a-dia, aliás com muito orgulho e coragem, são consideradas inteiramente masculinas, como marido, pai e avô, por exemplo. Não posso dizer que sou homem, porque tenho seios e um corpo de contornos tipicamente femininos, além de me vestir com roupas socialmente classificadas como “de mulher”. Não sou trans, porque nunca foi minha intenção deixar a caixinha de gênero onde fui originalmente “acomodada” ao nascer – a caixinha masculina – para migrar para a outra caixinha disponível na sociedade – a feminina –, e tendo em vista que a sociedade não oferece outras caixinhas fora dessas duas. Além do mais, tendo a aparência de mulher, me vestindo como mulher e agindo como mulher no dia-a-dia, eu não tenho o menor interesse sexual por homens, o que me transforma num caso completamente fora-de-série.

Entretanto, a despeito das minhas inadequações aos padrões de identidade, expressão e papeis de gênero, nunca deixei de cumprir minhas funções sociais com o máximo de zelo, carinho e responsabilidade. Meu crime? Apenas ser diferente do que as “normas” prescrevem.

Por eu ter assumido ser minha própria personagem fui e continuo sendo covarde e maldosamente privada de oportunidades de trabalho, dentro das inúmeras habilidades profissionais que desenvolvi ao longo da minha vida. Fui e continuo sendo covarde e sutilmente excluída de participar mais ativamente da sociedade em que vivo, de poder oferecer minha honesta contribuição nas minhas diversas áreas de competência. Fui e continuo sendo covarde e cruelmente impedida de ao menos poder usar oficialmente um nome compatível com a personalidade feminina com a qual eu me apresento no dia-a-dia.

Minha punição teria sido ao menos "justificada" se eu tivesse cometido crime contra o patrimônio público ou privado, se eu tivesse agredido ou violentado pessoas, física ou moralmente, se eu tivesse descumprido as responsabilidades sociais que livremente assumi – de marido, pai e avô – e que nunca deixei de exercer com a máxima dedicação e boa vontade.

A norma binária de gênero, que eu transgredi e, por causa da minha transgressão, fui e continuo sendo tão gravemente punida pela sociedade, é a norma que obriga as pessoas a mentirem para elas mesmas, obrigando-as a se manifestarem no dia-a-dia na pele de personagens que elas nunca foram. É uma norma baseada na mentira de que gênero é a mesma coisa que sexo biológico, que nos é imposta pela natureza e não por um pesado condicionamento social a que somos submetidas desde o útero da nossas mães.

Sei que, muito provavelmente, eu jamais volte a poder ensinar numa escola, mesmo tendo dois mestrados no meu currículo. Sei que, muito mais do que provavelmente, eu jamais volte a ser convidada a sequer fazer uma palestra em alguma das inúmeras organizações públicas e privadas em que prestei serviços por tantas décadas. Minha simples presença decerto confunde, envergonha e transtorna a perfeita “ordem e normalidade” das nossas escolas e organizações.

Nem oportunidade eu tenho para expressar publicamente, de maneira ampla e geral, o meu pensamento: a mídia, escrita e “videoteipada”, faz questão de ignorar a minha existência. Vez por outra, sou "prestigiada" como simples “curiosidade circense”...

Mesmo perdendo, como eu perdi, todos os direitos mais elementares de qualquer pessoa; mesmo sem nenhuma oportunidade de trabalho ou perspectiva profissional, em curto médio ou longo prazo, como fui obrigada a me acostumar nos últimos dez anos; mesmo esquecida e invisibilizada, apesar de todo o meu potencial humano e técnico, acumulado por 6 longas décadas de desenvolvimento pessoal e profissional intensos, ainda assim não voltaria nem por segundo àquela vida íntima, falsa e insossa, a que me obriguei a viver, por tanto tempo, em nome de obter favores e recompensas da sociedade ou, na pior das hipóteses, para não viver as dores de cabeça que passei a ter depois de me assumir como pessoa transgênera, isto é, transgressora das “normas” de gênero em vigor na sociedade.

Às vezes tudo isso bate muito forte em mim, que me dá uma vontade tremenda de chorar pela injustiça do mundo. Mas logo me recupero e salto para a alegria de quem luta e acredita na luta, me lembrando de que não estou sozinha nesse “abandono premeditado e propositado” da sociedade: eu estou numa revolução, eu falo de mudança, eu luto pelo progresso da humanidade. O que mais poderia eu esperar da “ordem vigente” senão o desprezo e a desconsideração de que tenho sido vítima? Tapete vermelho e salva de canhões são reservados aos “normais”, não às pessoas “anormais” como eu. Para nós, a sociedade reserva apenas os canhões, diretamente apontados para nossas cabeças. Mas, mesmo com tantos canhões diretamente apontados para a minha testa, tô indo em frente, sozinha e muito bem acompanhada por mim mesma, sim senhor!

Cara feia não é arame farpado, quem tá na chuva é pra se queimar e, apesar do ditado popular dizer o contrário, nem caranguejo anda para trás! As frustrações são muitas, as dificuldades são feias, o "lutame" é grande e o “ganhame” é pouco mas, mesmo com isso tudo, nada vai me fazer voltar para a "normalidade".

Um comentário:

Deisy Ventura disse...

Letícia, eu te descobri no catálogo de uma exposição da Laerte, e nunca mais parei de te citar. No mundo com o qual eu sonho, tu serias das profissionais mais disputadas e cobiçadas do universo. Se esse mundo está longe, perto, ou já existe em fragmentos, não importa. Importa é ir na direção dele, nesse caminho que tu iluminas. Um beijo com grande admiração de tua fã!