sexta-feira, 2 de março de 2018

A lei andou quilômetros. Agora a sociedade precisa andar pelo menos alguns metros...

Uma coisa é a lei, outra coisa é a norma. Com muita propriedade e erudição, os onze ministros do STF entenderam que coisas como igualdade de todos e liberdade de expressão devem ser realmente para todos, independentemente de raça, sexo, identidade de gênero e o que mais for, não estando de maneira nenhuma reservadas para grupos específicos, supostamente “escolhidos” pelo Criador.

Adicionalmente, no mesmo ato em que desjudicializaram a conduta transgênera, nossos juristas maiores também a despatologizaram para sempre nesse país, eliminando a necessidade de diagnósticos psico-psiquiátricos comprovando que a pessoa em questão, numa demanda jurídica pela alteração do seu nome civil, era portadora de “disforia” de gênero.
Resumindo: com uma só tacada, ou canetada, os nobres juízes do Supremo – os onze, em coro – tiraram a transgeneridade da condição de transgressão das leis e de doença mental. Espero que ninguém mais saia por aí dizendo aquela besteira que “nasceu no corpo errado”. Diante da Constituição do país, todo mundo nasceu no corpo certo e tem o direito de expressar a sua identidade de gênero como bem lhe aprouver, sem a necessidade de comprovar coisas esdrúxulas como ser portadora de suposto transtorno mental.

Mas, como eu já disse antes, uma coisa é a lei, outra coisa é a norma. Devidamente interpretada pelo Supremo Tribunal Federal, a lei, a partir de agora, não reconhece nenhuma transgressão ou transtorno no comportamento de uma pessoa transgênera. Juridicamente, a transgeneridade passa a ser vista como um aspecto absolutamente natural da sociedade. E é muito pouco provável que fundamentalistas religiosos e obscurantistas em geral consigam promulgar uma lei federal alterando a interpretação do STF, única forma possível de reverter o que os onze juízes decidiram por unanimidade.
A norma, contudo, está longe de mudar. A norma não decorre das leis mas das crenças, valores e costumes vigentes na sociedade. E, ao contrário da lei, a norma não admite interpretação e só muda muito lentamente, como fruto da própria mudança da sociedade como um todo.

Se ponto do vista jurídico acabamos de nos tornar uma sociedade inclusiva para as pessoas transgêneras, do ponto de vista normativo estamos muito distantes disso. Somos uma sociedade cisheteronormativa, em que o machismo e a transfobia são dados estruturais.

A mudança de interpretação da lei é muito bem vinda mas, sem querer ser pessimista, ainda teremos dias muito difíceis pela frente. Grande parte da medicina continua vendo a transgeneridade como uma condição patológica, necessitando de tratamento médico-cirúrgico, além ainda de considerar o gênero como uma mera consequência do sexo biológico das pessoas. Com essas posições aliás, a medicina permanece mais emparelhada com as religiões, de um modo geral, e com as seitas fundamentalistas, de modo particular, do que com a Justiça.

A lei avançou quilômetros, mas vamos ter que lutar muito para fazer a sociedade andar pelo menos alguns metros, sem o que a lei não servirá para nada, além de nos causar uma enorme frustração.

Um comentário:

Mônica Porfírio disse...

Fato: Um grande passo, mas, sinto ( pressinto) ainda muita dor, muito mimimi e até um " quebra" na comunidade LGBT ... não estou sendo pessimista... a historia possui um vicio muito maldito ela se repete ... foi assim com a Abolição ... a Lei do Divorcio e blablabla ... Acredito ( sempre) na posição coesa de mentes como a sua que liderarão essa comunidade, evitando surtos e situações desnecessárias e evidente, um colo, um carinho , um acolhimento pelos menos favorecidos ... ainda teremos que desviar de muitas pedras... paus nessa caminhada de metros ... abraços!!!