quinta-feira, 1 de março de 2018

Gênero não é uma dimensão biológica do indivíduo

Desde que o mundo é mundo SEXO sempre esteve identificado com a GENITÁLIA (pênis, no macho, e vagina, na mulher), mais as características sexuais secundárias, como seios na mulher e rosto barbado no homem, que não podem ser consideradas universais (como o pênis e a vagina) uma vez que podem variar fortemente com a etnia do indivíduo (machos indígenas não têm barba, p. ex.). A partir de meados do século XX, com a descoberta do DNA, sexo passou a ser também uma sequência de GENES que todo indivíduo recebe por herança biológica (XX, para a fêmea, e XY, para o macho, combinações essas cada vez mais contestadas em sua “pureza” original).

Ao contrário do SEXO, que é um determinismo da natureza, a designação do GÊNERO de uma pessoa (masculino ou feminino, homem ou mulher) se faz de acordo com a genitália que cada pessoa apresenta ao nascer (macho, pênis > homem; fêmea, vagina > mulher) ou, hoje em dia, muito antes disso, a partir de uma mirada no ultrassom. GÊNERO é assim, antes de tudo, um NOME MASCULINO ou FEMININO, consignado no Registro Civil e presente, com destaque, em todos os demais DOCUMENTOS LEGAIS que uma pessoa é obrigada a manter pela vida afora. Embora haja nomes que não identificam com clareza o gênero da pessoa (como Jaci, Eli ou Adir) na esmagadora maioria dos casos o nome e o vestuário são os principais indicativos do gênero de uma pessoa.

As visões mais essencialistas, radicais e conservadoras da sociedade fazem questão de não ver a dimensão do gênero, tal como acabei de expor, como uma típica construção social, preferindo acreditar, ingênua ou maldosamente, que o sexo biológico já traz em si o registro de tudo que a pessoa é e vai ser durante sua vida sobre a terra. Infelizmente, tal visão é compartilhada não apenas por religiosos fundamentalistas cristãos e setores ultraconservadores da sociedade, mas também pelas ciências médicas, que também nunca assumiram que o gênero é uma dimensão social e não uma dimensão biológica do indivíduo.

Justamente por imaginar o gênero como uma dimensão biológica do sujeito, desde o final do século XIX a medicina insiste em patologizar as pessoas que insistem em expressar um gênero discrepante com o seu sexo biológico, considerando-as portadoras de transtornos cerebrais e mentais. Exatamente por causa disso, em meados do século XX, alguns pesquisadores, especialmente o médico austríaco-americano Harry Benjamin, postularam que a forma primordial de “tratamento” de pessoas que apresentam disfunção de gênero é a cirurgia para modificação da genitália. Acreditavam que com esse procedimento o indivíduo se tornaria inteiramente uma pessoa do outro sexo e que, dessa forma, estaria “autorizada” a ser classificada no gênero em que insistia pertencer.

Tolice maior não existe. Em primeiro lugar porque, na época em que e realizaram esses estudos, praticamente não se falava de fêmeas se identificando como homens – e não como mulheres, como a sociedade esperava que fosse. Só se sabia de machos se identificando como mulheres. Dessa forma, a mudança de genitália era vista apenas como a troca de um pênis por uma vagina, procedimento que, embora complexo, ainda é infinitamente mais simples do que a substituição da vagina pelo pênis.

Com o avanço das possibilidades de expressão da fêmea, até então dominada pela camisa de força em que vivia a mulher na sociedade patriarcal-machista, as fêmeas começaram a expressar desvios de gênero, tal como vinha ocorrendo com os machos.

Acompanhando a visão essencialista-biologizante da medicina, a Justiça compreendeu até recentemente que, para ser autorizada a troca de nome de uma pessoa por motivo de identificação pedidos à Justiça para retificação do registro civil. Mas o aumento vertiginoso de processos envolvendo pessoas FtM (fêmea para macho, feminino para masculino) desencadeou pareceres favoráveis de juízes a processos de mudança de nome civil sem que a pessoa interessada tivesse feito cirurgia de reaparelhamento genital.

Ainda que de maneira enviesada, tal autorização judicial enseja, em si, dois fatos importantíssimos, pelos quais eu venho me batendo há anos:

1 – A questão de gênero é um problema de ordem sociopolítico-cultural. Do ponto de visto biológico, sexo é algo totalmente desatrelado de gênero, embora o sexo genital ainda seja o único instrumento utilizado politicamente pela sociedade para enquadrar bebês como homens ou mulheres no momento do nascimento.

2 – É o gênero assumido que define o sexo de uma pessoa, não o contrário. Ou seja, se alguém se identifica como homem, seu sexo é masculino, ainda que a pessoa não possua o órgão genital do macho.

3 – Não podemos abordar a questão de direitos do ponto de vista exclusivista de uma única transidentidade. O que define uma pessoa transgênera não é o sua expressão de gênero, o seu desejo ou estilo de vida, mas a transgressão jurídico-institucional da ordem vigente.

Pode ser que hoje, dia 1º de março de 2018, o STF – Supremo Tribunal Federal reconheça o fundamento de toda a minha argumentação apresentada acima, liberando pessoas transgêneras (e não especificamente pessoas transexuais) para a mudança de sexo e gênero no registro civil, sem a necessidade de processos judiciais ou de laudos psiquiátricos atestando a “patologia” da pessoa solicitante.

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