sexta-feira, 23 de novembro de 2018

A ética do desejo e a moral do gozo


1. Eu não nasci no corpo errado. Eu nasci na sociedade errada.

2. Tenho vivido com muita intensidade e profundidade, na minha própria pele, essa assustadora e demolidora tensão entre o ser desejante e a sociedade castrante. Peço licença para compartilhar com vocês um pouco do que eu aprendi, a muito duras penas, com a minha própria vivência, corporal e psíquica.

3. Embora eu tenha tentado ardentemente, eu nunca quis, eu nunca consegui, me enquadrar plenamente no papel de homem definido pela ordem vigente. Homem não faz meu tipo, em nenhum sentido, especialmente no sentido sexual.

4. Mas antes que eu seja vista como uma feminista radical tipo Valerie Solanas e seu SCUM MANIFESTO (Society for Cutting Up Men -Sociedade para Acabar com o Homem), quero dizer que não tenho absolutamente nada contra o homem gente, mas contra o homem instituição, representante máximo e absoluto do falocentrismo e da falocracia. Estou falando daquele sujeito que é um pênis que tem em anexo uma pessoa.

5. Para sorte da humanidade - e tormento desse pênis ambulante - o falo – o maior de todos os totens-fetiche da sociedade patriarcal, masculina e machista - está nos seus últimos estertores. Desde o início do século XX, o falo vem perdendo terreno progressivamente para a fala – real, feminina e feminista que irá sucedê-lo, caso ele não destrua inteiramente o planeta apenas para não abdicar do poder.

6. Minha história sempre foi marcada por uma sucessão de conflitos e tensões com a sociedade falocêntrica e falocrática. Sou um caso de identificação de gênero fora dos padrões de enquadramento de gênero vigentes na nossa sociedade. Nasci macho, me identifico como mulher e minha orientação sexual sempre foi pela fêmea. De acordo com os CIDs e DSMs da vida, ainda sou tecnicamente portadora de distúrbio mental. Popularmente, posso ser classificada como uma mulher transgênera lésbica. Diante de mim, eu não me reconheço nem como homem, nem como mulher, nem como trans, mas apenas como Letícia Lanz, uma criação de mim mesma.

7. O dispositivo binário de gênero, ou binarismo de gênero, é a fundação primordial do falocentrismo. De acordo com esse dispositivo, implantado há cerca de 10.000 anos, durante a chamada revolução agrícola, o macho é superior à fêmea que a ele deve se submeter sem maiores discussões, sob pena de ser duramente punida, com todos os requintes possíveis e imagináveis de crueldade.

8. Baseado exclusivamente na presença ou na ausência do pênis, o binarismo de gênero, fundante do patriarcado, estabeleceu uma rígida divisão de papeis sociais, políticos econômicos e culturais, entre machos e fêmeas biológicos.

9. Aos trancos e barrancos, esse modelo binário de gênero vigorou intocado até meados do século XX, valendo-se para isso de suposições de natureza biológica altamente tendenciosas e de inquestionáveis disposições da divindade em pessoa.

10. Graças à muito bem sucedida revolução da mulher no século XX, o dispositivo binário de gênero encontra-se hoje totalmente em frangalhos, com a árdua divisão de papeis de gênero, mantida a ferro e fogo por milênios, totalmente borrada.

11. Contudo, enquanto na vida diária desapareceu inteiramente a fronteira entre as duas categorias de gênero – homem e mulher – na forma de constituição e no exercício do poder, essa entidade chamada homem insiste em continuar no trono, dispondo sobre a vida e a morte, como tem feito pelos últimos 10.000 anos.

12. Uma das minhas primeiras e mais dolorosas “descobertas existenciais”, ainda em idade muito precoce, foi de que o outro (papai, mamãe, a professora, os coleguinhas de classe), haveria de intervir de maneira direta e radical em minha vida, obrigando-me a fazer escolhas – para o meu próprio bem – completamente divorciadas do meu desejo.

13. Esse “outro”, tipicamente falocentrista, falocrático e machista, estaria me vigiando, me aterrorizando e me obrigando a reprimir e recalcar o meu desejo que ferisse a suas regras morais – renunciando simultaneamente a buscar formas e objetos de satisfazê-lo.

14. Através de manipulação benévola, vigilância e terrorismo, muito cedo eu vim a saber que, “para o meu bem” era melhor que eu mantivesse o meu desejo e os objetos de gozo do meu desejo dentro dos estreitos parâmetros morais definidos pela sociedade.

15. A primeira interferência radical desse outro, isto é, da ordem social vigente, em minha vida foi no meu processo identificatório de gênero. Por ter nascido do sexo macho, isto é com um pênis, eu fui compulsoriamente classificada e condenada a viver como homem.

16. Ninguém nunca me perguntou em nenhum momento se era confortável para mim viver e atuar como homem na sociedade. Embora eu desse mostras claras de que não me adequava ao universo masculino, eu tinha que viver como homem, mesmo não querendo, mesmo que o meu desejo fosse viver como mulher.

17. Como afirmou Simone de Beauvoir, e estendendo ao homem a sua importante conclusão, ninguém nasce mulher – nem homem – : aprende a ser.

18. Contudo, dentro da sua arrogância e onipotência, a sociedade pressupõe que a identificação do macho biológico com o homem instituição políticossocial ou da fêmea biológica com a mulher instituição políticossocial deve acontecer naturalmente, como se se tratasse de uma simples manifestação da herança biológica de cada pessoa.

19. Não é, definitivamente não há nenhum determinismo ou automatismo nesse processo identificatório, e eu me considero uma prova viva disso. É a sociedade que fornece o modelo de homem e de mulher que devemos aprender a ser. Meninos não nascem gostando automaticamente de carrinhos, como meninas não nascem automaticamente se maquiando e brincando de bonecas.

20. Sexo biológico é imutável. Independentemente da sociedade a que nos referirmos, a natureza fornece os indivíduos humanos em quatro modalidades: machos, fêmeas, intersexuais e nulos. Gênero, ao contrário de sexo, varia substancialmente e varia em quatro direções: a) entre diferentes sociedades; b) na mesma sociedade em diferentes épocas; c) na mesma sociedade e época, em diferentes extratos da população e d) ao longo da própria vida de cada pessoa.

21. O processo identificatório de gênero (subjetivação do indivíduo) é extremamente complexo e varia substancialmente de indivíduo para indivíduo. Hoje sabemos com certeza que não basta a uma pessoa nascer como macho para identificar-se naturalmente como homem, como a sociedade quer e exige. Nasci macho e nunca me identifiquei naturalmente com o ser homem que me foi exigido pela sociedade justamente pelo fato de ter nascido macho. O pouco de identificação que conseguiram de mim foi à custa de muita porrada, vigilância e terrorismo.

22. O processo identificatório de gênero, que é basicamente o próprio processo de subjetivação do sujeito, começa ainda no útero da mãe, através do ultrassom, permanece ativo e se intensifica ao longo de toda a vida da pessoa, através de mecanismos nada sutis, pelo contrário, ostensivos e cruéis, de vigilância e terrorismo. Trata-se de um processo extremamente complexo, que não pode de maneira alguma ser reduzido a um ou dois fatores.

23. A simplificação do processo identificatório de gênero levou à ruína dois dos mais destacados sexólogos dos anos 1950: John Money, de linha culturalista e Robert Stoller, de linha biologizante. Os desastrosos casos David Reimer e Agnes ilustram o tamanho do desastre.

24. A primeira e a mais fundamental de todas as perguntas que eu sempre faço é o que é que eu quero, que equivale dizer “qual é o meu desejo”.

25. Longe de comportar uma resposta simples e direta, essa pergunta sempre me fez enveredar por indagações muito amplas, difusas e complexas como, por exemplo, “o que eu quero é realmente o que eu quero querer ou eu apenas estou querendo o que o outro (a sociedade) quer que eu queira?”

26. A principal ferramenta de controle dos indivíduos aberta e sutilmente empregada pela sociedade é a padronização do desejo e das formas de gozo, que eu chamo de regimento moral do desejo e regimento moral do gozo.

27. Segundo esses dois “regimentos”, nem tudo pode ser livremente desejado pelas pessoas, como nem tudo pode ser objeto de satisfação do desejo. Dito de outra forma, as pessoas só podem desejar aquilo que os regimentos morais da sociedade autorizem que ela deseje.

28. Se a pessoa ousar desejar fora desses parâmetros, será considerada transgressora das normas de conduta social e terá sua conduta judicializada e/ou patologizada, recebendo as sanções e penalidades reservadas às pessoas sociodivergentes.

29. Desde o meu nascimento, tenho experimentado na própria pele a observação de Freud de que somos feitos de carne mas temos que viver como se fôssemos de ferro.

30. E quem nos obriga a ser de ferro senão a sociedade – patriarcal, falocêntrica e machista – em que temos vivido nos últimos 10.000 anos? Quem, senão esse monstro sem rosto, que se faz cruel em nome de ser bondoso, tão abstrato e tão concreto, que nos pressiona, obriga e controla o tempo todo para que a gente se submeta passivamente ao seu enquadramento moral? Sem o que, segundo ele, todas seremos privadas da segurança e do bem estar da vida em sociedade?

31. Submetermo-nos, aqui, significa invariavelmente ceder, negar, bloquear, renunciar, abrir mão, reprimir e recalcar tanto o nosso desejo quanto as formas e os objetos para a sua realização.

32. Voltando à frase de Freud, permitam-me considerar “carne” como sinônimo de desejo e ser feito de ferro como sinônimo de resistir ao desejo. A frase então, seria escrita assim: somos feitos de desejo mas temos que viver resistindo a ele.

33. Foi essa resistência ao desejo, repleta de tensões e conflitos de toda ordem, que me obrigou a ser uma espécie de especialista em repressão, recalque e transgressão.

34. Era necessária uma extraordinária coragem para enfrentar a moral do gozo e correr atrás do meu desejo, como recomendava Lacan. Uma extraordinária dose de senso crítico para colocar em prática o princípio enunciado por Freud de que “a felicidade é um problema individual. Aqui, nenhum conselho é válido. Cada um deve procurar, por si, tornar-se feliz”.

35. Ou eu me autorizava a desejar o meu desejo e gozar o meu gozo, dentro da ética do desejo preconizada por Freud e ratificada por Caetano Veloso (cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é) ou eu morria.

36. Coragem que eu não tinha, diante das ameaças permanentes e ostensivas de rejeição e retaliação por parte da sociedade. Se eu me entragasse ao meu desejo, eu seria exemplarmente punida por tentar ser feliz ao meu modo, ou melhor, por atentar contra as disposições da ordem falocêntrica.

37. Por causa dessa falta de coragem, acabei infartada. Fui parar numa UTI. Ali, na UTI, eu tive que decidir: assumir a falta que moveu a vida inteira ou morrer.

38. O resto da história acho que muitas de vocês conhecem. Desci aos infernos diversas vezes, amargando o meu enfrentamento como a moral do gozo. Perdi todos os meus clientes de consultoria que, num silêncio grave e obsequioso, simplesmente se esqueceram da minha existência. Com a perda deles, perdi a minha principal fonte de renda que era a consultoria. Da minha conta bancária, cheia de zeros, ficaram apenas os zeros. E abriu-se um vazio imenso na minha agenda, antes repleta de compromissos de janeiro a janeiro.

39. Mas consegui conservar o que para mim era e é realmente importante: a companheira, hoje de 43 anos, de quem eu sou marido e não marida; os filhos, na condição de pai – e não dessa aberração de pãe; os netos, de quem eu sou avô e não avó.

40. Por ser absolutamente inconsistente e parcimoniosa, a única forma que a moral do desejo e a moral do gozo têm de se implantar é mediante a concessão de vantagens e benefícios aos que a ela se submetem, assim como a imposição da força bruta, das falsas premissas científicas e da vontade de Deus, expressa nos livros sagrados da religiões, aos que optam por seguir Freud e viver de acordo com a ética do desejo.

41. No meu livro O CORPO DA ROUPA, já no subtítulo, descrevo essa lógica perversa da moral do gozo, que é também uma moral identitária: a pessoa transgênera entre a conformidade e a transgressão das normas de gênero.

42. Em Romanos 7:7, o apóstolo Paulo afirma: “eu pequei porque havia a lei. Mudem a lei que eu paro de pecar”. Como se vê, o nobre e venerando apóstolo prega abertamente a subversão da lei como forma de realização do desejo dele.

43. Trata-se de colocar em prática o velho enunciado de Freud de que “a felicidade é um problema individual. Aqui, nenhum conselho é válido. Cada um deve procurar, por si, tornar-se feliz”.

44. Para mim, esse enunciado mostra a psicanálise como uma ética do sujeito, permanentemente confrontado com os regimentos morais da sociedade. Ninguém melhor do que o personagem magistral de Shakespeare para encarnar o indivíduo que assume essa ética. Como diz Fernando Pessoa, “consciência dói”.

45. Mas advirto que não há como alcançar essa ética pessoal do desejo sem alguma forma de transgressão da ordem vigente, totalmente contrária e refratária à aquisição dessa ética por parte do indivíduo. O filme Matrix I, das irmãs Wachovsky, ilustra bem o que estou afirmando.

46. Nesse sentido, a psicanálise contemporânea está muito mais próxima de uma estratégia de guerrilha do que de um armistício de paz interior, como tantos ainda a vislumbram, como se ela se tratasse de uma técnica oriental de meditação ou um sistema de autoajuda.

47. Mas para ser essa estratégia de guerrilha, a psicanálise vai ter que fazer uma profunda autocrítica dos seus conceitos, métodos e técnicas. Coisa muito difícil de ser feita, pelo menos de ser feita sem muitos traumas e fissuras.

48. O que não é indicado para a sobrevivência e a ampliação do pensamento freudiano é ele tornar-se refratário às demandas do seu tempo, permanecendo fiel a discursos e práticas que não fazem mais nenhum sentido no mundo contemporâneo.

49. Ou seja, não podemos ser resistentes à resistência do falocentrismo e da falocracia, do machismo, da misoginia, do racismo, da lgbtfobia. Sob pena de desaparecermos junto com o neoconservadorismo que abala o mundo atual.

50. Acredito firmemente que esse reacionarismo conservador que estamos vivenciando no presente nada mais é do que o canto de cisne de uma ordem social que não tem mais fundamento no mundo contemporâneo. Como em tantos outros processos reacionários vividos pela humanidade, essa reação também está fadada ao fracasso. A história nos ensina que o progresso, a liberdade e a justiça sempre acabam vencendo de um jeito ou de outro.

51. Sei que haverá muitos percalços nessa transição do falo todo-poderoso para a fala igualitária, generosa e acolhedora de toda a humanidade.

52. Sei que teremos que cruzar mares muito agitados e tempestuosos, enfrentando os monstros marinhos do inconsciente individual e coletivo, antes de dobrarmos,em segurança o cabo da Boa Esperança, rumo às novas terras das Índias.

53. Mas o que é uma fogueira para quem passou décadas morando na cratera incandescente de um vulcão? O que é uma tempestade tropical para quem conseguiu sobreviver a grandes furacões?

Letícia Lanz
(Apresentado no Congresso da Escola Brasileira de Psicanálise, Rio de Janeiro, 23-11-2018)


Um comentário:

Unknown disse...

Leticia, querida, como sempre, você é minha ídola, mulher corajosa que joga no chão e esmigalha todos os parâmetros vigentes sobre identidades de gênero, para que deles, brotem novos, mais verdadeiros e mais condizentes com imensa complexidade do ser humano. Sobre a psicanálise, concordo inteiramente e tento realizar a autocrítica que você recomnda. Por fim, repito o lema do GPH "o amor vence sempre!"