domingo, 11 de novembro de 2018

Morreu João Nery, meu amigo, amigo de todo mundo

Morreu João Nery, meu amigo, amigo de todo mundo, e que todo mundo gostava de dizer que era amigo. Também era difícil alguém não gostar do João ou ele não gostar de alguém. Tinha que ser pessoa de muitos maus bofes para não se apaixonar pela coragem, gentileza, ternura, inteligência, carisma e presença de espírito do João. Assim mesmo, o João ainda era capaz de achar alguma coisa na pessoa que pudesse incluí-la no seu imenso rol de amizades. No coração dele havia sempre espaço para mais alguém, fosse quem fosse.

João era unanimidade. Exagero meu? Nem um pouco, dirão todas as pessoas que tiveram o privilégio de conhecê-lo e de conviver com ele, ainda que por pouco tempo. João irradiava paixão pela vida e pelas pessoas.

Passar incógnito simplesmente não existia no seu DNA. Onde o João fosse, todo mundo sabia imediatamente que ele tinha chegado. E onde ele ia, brilhava sempre, com um brilho muito seu e muito intenso, que iluminou o caminho de muitas e muitas pessoas mas também cegou algumas que não puderam suportar sua luz.

Tive a oportunidade de desfrutar da sua companhia um monte de vezes. E cada encontro com o João foi algo absolutamente memorável na minha vida. Até mesmo as deliciosas rusgas intelectuais que tivemos foram momentos de muito amor e crescimento.

Fizemos muitas palestras juntos. Quando era minha vez de falar, o João me interrompia o tempo todo, comentando minhas falas, discutindo comigo. Eu simplesmente adorava suas intervenções, ali, na hora, que geravam discussões apaixonadas entre nós e faziam o público se deliciar com a nossa maneira livre, descontraída e irreverente de conduzir as coisas. E quando o João cansava dos debates, não tinha dúvidas. Tomava o microfone e avisava:
- Leti, eu tô morrendo de fome; cê ainda ainda vai demorar muito para acabar? Nós vamos perder o jantar!

Leti: era assim que ele me chamava, desde a primeira vez que nos encontramos. Ninguém mais nunca me chamou assim.

Vejo ele entrando na minha cozinha.
- Uhm, o cheiro está ótimo! O que é que você está fazendo, Leti? E, sem a menor cerimônia, já ia testando meus preparos, diretamente das panelas.
- Tire a mão das minhas comidas, rapaz! Sei lá onde foi que você pôs essa mão! E trate de ir se arrumar que nós já vamos servir o almoço.
A gente ria muito e a vida passava feliz.

Quando jovem, refugiado no Uruguai junto com seu pai durante a revolução de 1964, João teve ninguém menos do que Darcy Ribeiro como professor e amigo. Bastava ele contar, cheio de orgulho, esse encontro com uma pessoa tão especial quanto Darcy, pra gente descobrir de onde tinha vindo o modelo de homem simples, sincero e franco que ele era.

Para viver como o João que ele sempre foi, contrariando a natureza e a sociedade, teve que abrir mão de tudo e mais um pouco. Como conta na sua autobiografia “Viagem Solitária”, perdeu nome, amigos, títulos universitários , emprego de professor, futuro brilhante como psicólogo. Sua transição obrigou-o a viver num anonimato forçado, com nome falso, completamente esquecido e invisibilizado pela sociedade. Teve que fazer muito malabarismo para sobreviver. Foi motorista, vendedor, pintor de paredes e confeccionista. Mas apesar de trabalhar com honestidade e humildade, sem escolher profissão, era tratado como se fosse um fora-da-lei – e era.

Naquela época, um médico realizar mastectomia em um homem trans podia levar os dois para a cadeia. Determinado a ter um corpo que combinasse com a sua identidade de gênero, João convenceu um cirurgião plástico a fazer sua mastectomia, tornando-se o primeiro homem trans operado no Brasil.

João era o tipo do sujeito teimoso, não o teimoso que teima por simples teimosia, mas o que teima com propósito, foco, energia, determinação e, sobretudo, confiança inabalável de que pode e vai alcançar seus objetivos. Quando punha uma coisa na cabeça, ele nunca duvidava que ela se tornaria realidade, mesmo quando as condições indicavam que nem por milagre.

E muitas vezes o milagre realmente não aconteceu. Mas nem assim esse João Teimoso baixava a cabeça e ficava por aí, pensando e sofrendo, como faz a maioria quando as coisas não saem como elas sonharam. Não esperava nem secar o suor misturado de lágrimas e já estava ele de novo no ringue, começando do zero, com o mesmo entusiasmo de quem está tentando pela primeira vez.

Chapéu panamá por cima dos óculos e o sorriso largo das pessoas vitoriosas, parece que o vejo na minha frente, como da última vez que a gente se encontrou.
- Leti, estou escrevendo um livro sobre a velhice trans e quero muito que você faça um dos capítulos, contando as histórias com os seus netos...
Ainda estou escrevendo o capítulo e espero que o livro seja publicado. O João, que jamais abdicou de nenhum dos seus sonhos, merece esse carinho da nossa parte.

Duas semanas antes de partir, telefonou para Angela.
- Oi querida, será que podemos passar mais uma vez uns dias com vocês em Curitiba no mês de janeiro? Você sabe que o calor aqui fica insuportável, e eu detesto calor...
- Mas é claro, João. Você e Sheila serão sempre muito bem vindos na nossa casa.

Antes que janeiro chegasse, João saiu para mais uma “Viagem Solitária”, dessa vez a maior e a mais longa de todas que realizou até aqui. Uma viagem em que sua experiência existencial vai contar muitos pontos ao seu favor nas contas do Universo.

Leva com ele a jornada vitoriosa de uma vida vivida com toda a intensidade, cheia de lances de persistência, ousadia, bravura e entusiasmo, virtudes que nunca foram tão necessárias quanto agora, nesses tempos sombrios e desesperançosos em que estamos vivendo. 


Um comentário:

Ester Álvarez G. disse...

Que linda homenagem, Leticia, e que grande perda para o Brasil :(