Chamamos de ideologia o conjunto das crenças, mitos, princípios, ideias e valores que fundamentam as opiniões, pontos de vista e posicionamento de uma pessoa, comunidade, grupo religioso, movimento social, partido político, etc.), determinando e guiando seus pensamentos e suas ações diante da vida, do mundo e da realidade à sua volta,
Gênero é, definitivamente, uma robusta construção social, que tem um peso enorme na própria constituição, organização e controle da sociedade – e não uma “ideologia”, moldada a partir de crenças, princípios, mitos e valores subjetivos. Gênero é algo extremamente concreto, extremamente visível e extremamente presente na vida diária de todas as pessoas, um atributo social sustentado por práticas discursivas repetidas à exaustão, que fazem com que machos e fêmeas biológicos aprendam a ser, compulsória e respectivamente, homem ou mulher.
O conceito de gênero passou a ser utilizado por pensadoras, acadêmicas, pesquisadoras e ativistas feministas a partir de meados dos anos 1960 do século passado, para descrever o processo de imposição de papeis, funções e normas de conduta aos indivíduos a partir do seu sexo biológico de nascimento.
para a imposição de papeis e foi um poderoso elemento na luta pela igualdade de direitos entre os sexos. Contudo, pelo seu próprio poder de desconstrução e checagem da ordem social, até então totalmente naturalizada, despertou a ira mortal dos conservadores, que viram no conceito de gênero um gravíssimo revés nas pretensões de continuidade ilimitada da dominação machista-sexista do homem.
Gênero não necessita de nenhuma ideologia política ou conjunto de crenças religiosas que lhe dê sustentação, ao contrário da ideologia da desigualdade de gênero, que precisa lançar mão do folclore bíblico e de estudos biológicos já superados a fim de garantir sua hipótese central, que é a dominação absoluta do homem sobre a mulher, ou, dito de outra forma, a rendição total da mulher à dominação masculina.
A ideologia da desigualdade de gênero é muita antiga, datando dos primórdios da revolução agrícola, ocorrida há cerca de 10.000 anos, quando o macho se apropriou não apenas dos meios de produção, mas, sobretudo, dos meios de procriação da espécie, por meio da subjugação da fêmea.
Foram os teóricos da ideologia da desigualdade de gênero, em sua maioria oriundos de setores ultraconservadores da igreja católica, que inventaram e passaram a disseminar a expressão ideologia de gênero, com o objetivo de desmoralizar o conceito de gênero e lançar uma cortina de fumaça para encobrir as pretensões de continuidade da milenar dominação masculina, colocada em risco de morte pela ampla redefinição e ampliação do espaço da mulher na sociedade contemporânea. Essa ira tornou-se pública, evidente e notória em setembro de 1995, em Pequim, na IV Conferência Mundial da ONU sobre a Mulher, cujo tema foi Igualdade, Desenvolvimento e Paz, quando participaram do evento 189 governos e mais de 5.000 representantes de 2100 ONGs. Dentre os principais temas tratados no encontro estavam assuntos absolutamente indigestos para os defensores da ideologia da desigualdade de gênero, como, por exemplo, o avanço dos direitos das mulheres e o seu extraordinário fortalecimento na sociedade contemporânea; a mulher e a pobreza; a mulher e a tomada de decisões na sociedade; a proteção da fêmea criança e adolescente; e a violência - inclusive a violência doméstica - contra a mulher.
Os defensores da ideologia da desigualdade de gênero começaram a enxergar, no notável avanço sociopolítico da mulher ocorrido a partir da segunda metade do século XX, a derrocada final do sistema patriarcal, e uma das suas estratégias de contra-ataque foi a invenção dessa falácia intelectual que apelidaram de ideologia de gênero, por meio da qual tentam aterrorizar a sociedade, profetizando um universo caótico, numa sociedade moralmente em ruínas, em virtude da perda do status masculino de dominação e da ascensão indiscriminada da mulher a postos de comando da sociedade.
Tendo em vista que seria um fiasco político atacar de frente o feminismo enquanto movimento social mais vitorioso do século XX, aliás, de todos os tempos, os defensores da ideologia da desigualdade de gênero voltaram os seus canhões para o chamado feminismo radical, que eles apelidaram de feminismo de gênero e que, segundo eles, tem sua origem na doutrina comunista fundada no pensamento marxista de Engels (A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, de 1884), em Simone de Beauvoir (O Segundo Sexo, de 1949) e em Shulamith Firestone (A Dialética do Sexo, de 1970), numa tentativa de ultrassimplificar o complexo pensamento feminista desenvolvido a partir da década de 1960. Foi a partir de Pequim que os teóricos da ideologia da desigualdade de gênero começaram a veicular a expressão “ideologia de gênero”, como disfarce para a verdadeira ideologia discriminatória e segregacionista contida no seu discurso de desigualdade e hierarquia natural entre os sexos.
Uma das definições de Marx para a palavra ideologia se encaixa perfeitamente na descrição do que é e para que serve a ideologia da desigualdade de gênero, quando ele afirma que ideologia é um conjunto de ideias que procura ocultar a sua própria origem nos interesses sociais de um grupo particular da sociedade1. Posteriormente, Lênin operacionalizou esse conceito marxista afirmando que ideologia é qualquer concepção da realidade social ou política vinculada aos interesses de certas classes sociais em particular2.
Mediante o emprego da ideologia, os teóricos da desigualdade de gênero tentaram produzir imaginários sociopolítico-culturais e lógicas de funcionamento da sociedade que, embora sem nenhum fundamento empírico, tentam encobrir o conflito entre as duas categorias oficiais de gênero, homem e mulher, de modo a dissimular o evidente propósito de dominação de uma sobre outra, ou seja, de supremacia masculina, ocultando a presença dos interesses particulares sob a aparência de legítimos interesses coletivos. Em síntese, a função básica da ideologia da desigualdade de gênero é garantir a dominação do homem sobre a mulher de modo a encobrir e evitar um cada vez mais inevitável conflito aberto entre dominadores e dominadas.
Dessa forma, a ideologia da desigualdade de gênero é uma tentativa de assegurar a dominação masculina mediante o ordenamento e a divulgação de explicações ilusórias e manipuladoras a respeito da superioridade natural do homem sobre a mulher, fundamentada principalmente em mitos bíblicos sem nenhum alicerce na realidade e até numa ultrapassada ciência biológica essencialista e naturalizante, construída com base em estudos tendenciosos e que há muito tempo já não gozam de nenhum prestígio entre biólogos realmente sérios e conscientes da sua profissão.
Sob a ótica do chamado essencialismo biológico, a notória situação de inferioridade econômica, social, política e religiosa da mulher em relação ao homem ocorre em virtude de fatores naturais, como a superioridade física e mental do macho sobre a fêmea, além do “imbatível” argumento de que foi a vontade divina quem determinou, desde o início dos tempos, que o homem fosse o chefe e o legislador da sociedade, e a mulher, sua mera coadjuvante subalterna, conforme disposto na bíblia cristã. O homem, enquanto grupo social hegemônico, sempre se beneficiou historicamente do recurso ideológico da naturalização, graças à qual tem permanecido no poder há milênios, estabelecendo, assim, uma ordem de privilégios, na qual ele se coloca no topo da hierarquia e na condição de herdeiro do divino.
Os pontos essenciais da ideologia da desigualdade de gênero podem ser sintetizados nas seguintes características estruturais desse sistema de crenças:
a) A ideologia da desigualdade de gênero é DOGMÁTICA, isto é, toma como ponto de partida dogmas religiosos e dogmas científicos a respeito do homem e da mulher que não demonstra, não prova, nem cogita de provar. É a partir dessas afirmações metafísicas, vagas e abstratas, que a ideologia da desigualdade de gênero tenta se estabelecer, sem nenhum rigor lógico, baseada exclusivamente na fé religiosa.
b) A ideologia da desigualdade de gênero é TOTALITÁRIA, não apenas no sentido de que pretende se impor à sociedade de maneira unilateral e arbitrária, mas também no sentido de que busca abarcar totalitariamente toda a realidade humana, não admitindo nenhum tipo de crítica ou oposição.
c) A ideologia da desigualdade de gênero é DEMIÚRGICA, isto é, ela se concebe a si própria como criadora de uma realidade que traduz integralmente a vontade de um Deus supremo, criador do universo.
d) A ideologia da desigualdade de gênero é UTÓPICA, negando-se a reconhecer a realidade concreta do ser humano vivendo em sociedade, mediante normas de conduta criadas e mantidas pela sociedade, tentando substituir essa realidade concreta por uma realidade contraditória, absurda e totalmente idealizada,
Segundo os ideólogos da desigualdade de gênero, há uma diferença radical entre homens e mulheres, e essa diferença é proveniente do sexo biológico, que é o único determinante da categoria de gênero em que cada indivíduo é enquadrado ao nascer e que não é modificável de maneira alguma ao longo da vida. A ideologia da desigualdade de gênero vê o sexo biológico como um dado inflexível e inexorável, que jamais pode ser alterado pelo gênero enquanto construção social. Por outro lado, comportamentos divergentes como a transgeneridade são amplamente condenados e vistos como manifestação de distúrbio mental e/ou de clara e flagrante desobediência à “ordem natural” e “divina” do universo, devendo ser exemplarmente punidos e/ou curados mediante terapias de conversão religiosa.
Para os teóricos cristãos da ideologia da desigualdade de gênero, a família natural, composta por pai, mãe e filhos, é a única formação capaz de expressar a vontade suprema do Criador, de acordo com a qual a prática do sexo deve ocorrer exclusivamente para fins de procriação. Tanto a liberação sexual feminina quanto a aceitação de outras manifestações da sexualidade e de expressão de gênero, fora do padrão cis-hétero-normativo, constituem, para os teóricos da ideologia da desigualdade de gênero, não apenas gravíssimos pecados mortais, como fazem parte de uma conspiração orquestrada por grupos feministas e grupos de ativismo LGBT+ visando, dentre outras desgraças para a sociedade organizada:
a) a total destruição da família, mediante a aprovação do casamento entre pessoas do mesmo sexo e a ampla liberação do aborto;
b) a apropriação total, pela mulher, dos meios de procriação, por meio da progressiva “dessexualização” da paternidade e do emprego dos bancos de sêmen;
c) a conquista das escolas e da mídia, com o fim de realizar a “colonização” feminista e “gayzista” da sociedade.
Em todos esses itens repousa, de modo oculto e dissimulado, o medo descomunal do homem de perder - como em grande parte já perdeu - o seu antigo status de legislador e comandante supremo da sociedade. Mas o maior temor dos defensores da ideologia da desigualdade de gênero é a queda de Jeová, a essa altura inevitável, signo maior da masculinidade dominadora, em vigor há quase dez mil anos na história da humanidade.
Essa é a visão paranoica do futuro da humanidade que a ideologia da desigualdade de gênero tenta vender às pessoas, afirmando que é isso que ocorrerá, caso o conceito de gênero seja amplamente difundido e assimilado como importante critério explicativo que é do fenômeno social. Felizmente, não se pode mais interromper esse processo, pois o conceito já se incorporou como uma das principais discussões sociopolíticas da sociedade contemporânea.
A divisão de papeis e funções entre o homem e a mulher na sociedade não tem uma origem natural, como advoga a precária, rudimentar e mentirosa argumentação dos teóricos da ideologia da desigualdade de gênero. Pelo contrário, trata-se de uma produção cultural de cada sociedade, em cada época, por meio da qual machos e fêmeas, em razão da sua genitália exposta ao nascer, são compulsoriamente treinados a performatizar desempenhos socialmente pré-fixados. É justamente esse determinismo do gênero e sua supremacia sobre atributos supostamente de ordem natural no homem e na mulher que tanto desespera os teóricos da ideologia da desigualdade de gênero, ancorados em visões idealizadas, dogmatizadas, cristalizadas e abstratas da realidade humana.
Gênero não é de maneira alguma um conceito novo, abstrato e “forjado” por mentes feministas desejosas de espalhar a discórdia e a subversão dos valores e costumes em vigor na sociedade, como argumentam os defensores da ideologia da desigualdade de gênero. Os Estudos de Gênero, de natureza necessariamente interdisciplinar, têm mostrado que o conceito de gênero está na própria base sociopolítica-cultural sobre a qual repousa todo o enorme castelo da civilização. E que, somente através dele, pode-se entender a dinâmica das relações sociais entre homens e mulheres na sociedade.
(1) “Os pensamentos dominantes nada mais são do que a expressão ideal das relações materiais dominantes; eles são essas relações materiais dominantes consideradas sob forma de ideias, portanto a expressão das relações que fazem de uma classe a classe dominante; em outras palavras, são as ideias de sua dominação”. (MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes, 2001, pág. 48.
(2) LOWY, Michael. Ideologias e Ciência Social - Elementos para uma análise marxista. São Paulo: Cortez Editora, 1985, pág. 12
Um comentário:
Esse foi o melhor artigo que eu ja li sobre ideologia de gênero em toda a minha vida. Emocionada...Letica Lanz .... sem palavras !!!
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