sábado, 4 de março de 2017

Gisberta e Dandara: a morte cruel e desumana de duas travestis

Faz uma década que uma travesti brasileira chamada Gisberta foi morta por adolescentes na cidade portuguesa do Porto. Gisberta tinha ido para a Europa atrás do sonho de obter recursos para fazer a cirurgia de readequação genital e outros acertos corporais para a sua completa feminização. No caminho do seu sonho, esbarrou com a frustração, a prostituição, as drogas e o HIV. Doente e sem recursos, viu-se obrigada a viver nas ruas, da caridade alheia.

Agredida e violentada durante vários dias por 14 adolescentes, seu corpo foi encontrado no fundo de um poço de 15 metros de profundidade. Mas seu suplício não foi inútil. Gisberta Salce Junior, morta de forma tão covarde aos 45 anos, tornou-se símbolo das lutas portuguesas pelos direitos civis das pessoas transgêneras. Seu sacrifício, mobilizou Portugal para a promulgação de leis de proteção dos direitos civis das pessoas transgêneras, sendo que o país tem, hoje, uma das legislações mais modernas e inclusivas do planeta.

Aqui no Brasil morre uma travesti por dia. Uma das últimas mortes, a da travesti cearence Dandara, chamou particularmente a atenção do público pelos seus requintes de crueldade, de fazer inveja aos mais ilustres carrascos nazistas. A morte chegou a ser filmada, mostrando de forma grotesca, cruel e desumana, o passo a passo da execução da travesti por um bando de homens selvagens, garantidos e incentivados pela sociedade primitiva e machista em que vivemos. Não contentes com sua execução, seus carrascos, agindo em nome da sociedade cisgênera, cortaram-lhe os testículos, numa alarmante demonstração de seu machismo transfóbico.

O crime de Gisberta e de Dandara? Não terem conseguido se adequar ao dispositivo binário de gênero, que obriga a um indivíduo, macho de nascimento, aprender a ser e a se comportar socialmente como homem. A pessoa que não se adequa a essa exigência, chamada de transgênera, fica exposta a todo tipo de punição pela chamada sociedade cisgênera, composta por pessoas que, pelo menos aparentemente, se adequam à exigência sociopolítica-cultural de que sua identidade de gênero concorde com o seu sexo genital.

Nem Gisberta nem Dandara foram capazes de preencher essa exigência estúpida da sociedade. A morte violenta das duas comprova a que ponto pode chegar a vingança da sociedade cisgênera contra pessoas que apresentam alguma não- conformidade às suas normas retrógradas e estapafúrdias de enquadramento de gênero.

Infelizmente, para maior indignação e tristeza de quem assistiu a torturante sequência de flagelação e morte da travesti Dandara é bem pouco provável que alguma coisa seja feita para punir os culpados e, principalmente, para prevenir futuras ocorrências semelhantes envolvendo o sacrifício de pessoas transgêneras.

Apesar da intensa mobilização momentânea em repúdio pela morte cruel de Dandara, em poucos dias todo mundo terá se esquecido de mais essa travesti covardemente sacrificada e os pastores estarão exortando seus fieis a sacrificar livremente quantas mais puderem e quiserem.

A morte de Gisberta mudou a legislação de um país. A morte de Dandara tende apenas a confirmar a sacanagem institucional propositalmente mantida contra a população transgênera do país, principalmente pela intervenção maligna da extrema direita católica e de seitas evangélicas fundamentalistas, através dos seus execráveis e nefastos representantes no Congresso Nacional. Tende a confirmar, também, a total impunidade dos homens que a executaram, que poderão até mesmo ser vistos como "justiceiros de deus" por uma parcela significativa da população. Assim como confirmará mais uma vez o injustificável imobilismo do “movimento organizado” que diz representar travestis e, na verdade, só representa a si mesmo. Um movimento falido e fracassado, que não é capaz sequer de conseguir uma mobilização nacional de toda a população transgênera contra mais esse terrível sacrifício desumano de uma travesti.

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