sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

Mudei meu nome civil como uma atitude política de "insistência"

Letícia Lanz, em 14-12-2018, após receber
a nova certidão de nascimento
Eu me chamo de eu e não me importo que as pessoas que me cercam me chamem como quiserem. Pessoas que me cercam são pessoas que eu amo e que sou amado por elas. Não é o caso de certas lideranças do gueto transgênero que, para me atacar e atacar as minhas ideias, sempre fizeram questão de me chamar pelo nome masculino, acrescentando, sarcasticamente, que eu era um homem vestido de mulher.

Na cabeça delas, eu jamais deveria ser reconhecida e aceita pela sociedade como mulher, pelo fato de ser lésbica, ou seja, gostar de mulher, e não de homens, como elas acham que deveria ser o normal. Os movimentos trans no Brasil, como eu tenho dito sempre, não existem para apoiar pessoas transgêneras, indistintamente, mas para "garantir" supostos direitos de transidentidades que consideram "hegemônicas". Graças à Deusa, elas sempre passaram vergonha na sua empreitada de me desqualificar e de me excluir porque, para a sociedade, eu sempre fui aceita pra lá de bem como mulher o que, infelizmente, nunca foi o caso de muitas delas...

Mas o que eu quero realmente dizer é que nome nunca foi uma questão importante em minha vida. Na verdade, a minha solitária cruzada política sempre foi pelo reconhecimento da pessoa como a pessoa que cada pessoa é, seja ela quem for. Odeio e repudio rótulos de qualquer espécie o que, desafortunadamente, não é o caso dos movimentos convictamente identitários dentro do campo transgênero. Eu não sou homem, nem mulher, nem trans: sou Letícia Lanz, uma construção de mim mesma.

Mas se nome não é uma questão sequer importante para mim, é uma questão importantíssima, absolutamente fundamental, para a sociedade. Como naquele antigo quadro da TV, para a sociedade ainda é tristemente indispensável que haja uma total correspondência entre cara e crachá. No meu caso, o crachá nunca correspondeu à cara. Quantas vezes, em bancos, aeroportos, consultórios, etc, fui interpelada pelas pessoas atendentes dizendo coisas do tipo “essa identidade aqui é do Geraldo; a senhora tem que apresentar o seu RG”...

Por outro lado, anos a fio, denunciei a ineficácia do tal “nome social”, um jeitinho bem brasileiro, construído, eu sei, com o máximo de boa vontade, para “aliviar” a tremenda carga emocional e sociopolítica na vida da população trans em virtude das tensões cara-crachá, tão presentes na vida das pessoas transgêneras.

Ao mesmo tempo, sempre fui radicalmente contra o enquadramento da transgeneridade como “condição patológica”, até então a única via para o reconhecimento oficial da identidade de gênero assumida por uma pessoa trans. Tal reconhecimento, contudo, exigia um verdadeiro calvário, além da espera, atormentada e neurótica, de dois anos, debaixo de severo acompanhamento psiquiátrico. Tudo porque a condição transgênera, por ser uma condição transgressiva da ordem binária homem-mulher, sempre foi patologizada e judicializada, como forma evidente de terrorismo sobre os desejosos de mudar de gênero e punição exemplar para as pessoas que ousassem cruzar as tão sagradas quanto arbitrárias regras de gênero em vigor na sociedade.

Assim, durante muito tempo, fui tanto uma crítica contumaz do “nome social” quanto da judicialização e patologização da condição transgênera. Felizmente, nessa luta, a Justiça Brasileira, a Ordem dos Advogados do Brasil e um número muito expressivo de profissionais de direito, tornaram-se grandes aliados da luta pela desjudicialização e despatologização da condição transgênera. Infelizmente, nunca houve nem sombra desse inestimável apoio do lado das entidades representativas dos profissionais de saúde e desses próprios profissionais, especialmente dos profissionais de medicina.

O apoio sério, oportuno, competente e responsável da Justiça Brasileira à causa transgênera culminou nesse ano de 2018 com o julgamento da ADI n. 4.275, pelo Supremo Tribunal Federal, que resultou no reconhecimento do pleno direito das pessoas transgêneras modificarem o seu prenome, sexo (e gênero) com uma simples ida ao cartório, munida de alguns documentos e certidões legais. O julgamento do STF tratou-se de um claro e inequívoco reconhecimento de que a condição transgênera NÃO É nem uma PATOLOGIA MENTAL nem uma TRANSGRESSÃO das normas de gênero em vigor na sociedade, mas de uma simples e clara identificação da pessoa com uma identidade de gênero que, para a sociedade, era até então incompatível com o seu sexo genital de nascimento.

Por outro lado – e isso é importantíssimo lembrar sempre – o Supremo Tribunal Federal colocou o Brasil na vanguarda do mundo atual, plenamente sintonizado com a vida das pessoas do século XXI, reconhecer que sexo genital NÃO DETERMINA o gênero de uma pessoa mas, ao contrário, É DETERMINADO POR ELE. Assim como NÃO É a presença ou ausência de um dado órgão genital que determina a identidade de gênero com a qual uma pessoa se identifica. É possível, sim, nascer macho, isto é, com um pênis, e identificar-se com o gênero feminino ou, ao contrário, nascer fêmea, isto é, com uma vagina, e identificar-se com o gênero masculino.

Aplaudi e comemorei o quanto pude a decisão do Supremo Tribunal Federal, mas renunciei, eu mesma, a esse direito, tão duramente obtido, de poder mudar o meu nome civil. Por ser casada, há quarenta e três anos; por ser pai de três filhos; por ser avô de duas netas e três netos; por já ter vivido a maior parte da minha vida. A essa altura da minha jornada, achei que seria uma veleidade mudar o meu nome no cartório, apenas para atender o que poderia ser uma simples vaidade pessoal. Afinal de contas, todo mundo me conhece e me reconhece como Letícia Lanz. Ninguém, especialmente eu, nunca colocou em choque a minha identidade de Geraldo com a minha identidade de Letícia. Pelo contrário, eu - e todo mundo que conheço - sempre consideramos a Letícia como um “upgrade” do Geraldo.

Entretanto, a partir do segundo semestre desse ano, o horizonte foi ficando cada vez mais cinzento, com o extemporâneo ressurgimento de discursos e ações altamente retrógradas e reacionárias no cenário político nacional. Internacionalmente, a coisa já vinha acontecendo desde a malfadada eleição de Trump. Alguns desses discursos, ressuscitaram antiquíssimas fábulas e crendices bíblicas a respeito da conduta das pessoas, histórias macabras e sem nenhum fundamento empírico, que pareciam já estar sepultadas há muitas décadas.

Esse é ambiente fundamentalista em que estamos hoje inseridos. Fundado num patriarcalismo arcaico e degenerado, traz de volta a cisheterossexualidade compulsória, que volta a ser arbitraria e gratuitamente "vendida" a um público mal formado e pouquíssimo esclarecido como “vontade de Deus”. E tudo indica que as nuvens carregadas que vemos no horizonte se transformem em terríveis tempestades a curtíssimo prazo.

Esse deplorável e desesperançado estado de coisas levou-me a repensar minha posição com relação à mudança de nome civil. Eu não poderia mais me omitir de exercer esse direito, sob pena de confrontar o meu próprio discurso através da minha clara omissão a uma janela de oportunidade criada pelo Judiciário Brasileiro. Era preciso posicionar-me politicamente de maneira clara e inequívoca com relação ao direito de cada pessoa ser quem ela é, meu mote discursivo de longuíssima data. E reafirmar a visão, que tanto difundi e continuo difundindo, de que é normal e é legal ser uma pessoa transgênera. De que a condição transgênera NÃO PODE, EM HIPÓTESE ALGUMA, ser tratada como PATOLOGIA e/ou TRANSGRESSÃO SOCIAL.

Por outro lado, com a cada vez mais próxima possibilidade de recrudescimento das ações persecutórias à população transgênera, a mudança de nome civil me deixaria de alguma forma mais protegida e menos vulnerável ao espírito primitivo e predatório de pessoas e grupos altamente retrógrados e transfóbicos.

Dividi minhas preocupações, como sempre faço, com Angela, minha amiga, esposa e companheira de quase cinco décadas. E dela recebi todo o apoio necessário, mesmo com todo o trabalho que terei, que teremos, para ajustar a documentação da família à minha nova identidade jurídica de gênero.

Consultei nosso especial amigo Marcos Quinupa que, como advogado, vem voluntariamente se dedicando há anos a ajudar pessoas transgêneras na mudança de prenome, e dele recebi toda a orientação para cumprir o ritual exigido pelas instruções normativas do Conselho Nacional de Justiça. Entrei com os papeis há uma semana e hoje, apenas sete dias depois, recebi minha nova certidão de nascimento.

Se, como eu disse lá no início, o nome nunca foi importante para mim no sentido de determinar quem eu sou, meu nome civil, LETÍCIA LANZ DE SOUZA, doravante devidamente consagrado pela Ordem Institucional do País, torna-se, nesse momento, um instrumento de afirmação da transgeneridade como uma condição normal existente em qualquer sociedade humana, em qualquer tempo e lugar. Torna-se, sobretudo, uma atitude política de “insistência” na defesa intransigente do direito de cada pessoa ser quem ela é, seja ela quem for.


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Um comentário:

Unknown disse...

Você é Genial !!!! Sua história, sua luta, seus textos nos enriquecem !!!! Um forte abraço Letícia Lanz !!