A questão da identidade de gênero ser ou não uma “escolha” dos indivíduos é uma das cantilenas mais chatas e pernósticas nas discussões sobre gênero. Há quem defenda de unhas e dentes a ideia de que a identidade de gênero se trata, sim, de uma “escolha” da própria pessoa e que, portanto, pode ser revertida a qualquer tempo.
É o caso dos fundamentalistas religiosos, com sua baboseira (supostamente) bíblica (não há nada na bíblia sobre isso) de que o gênero já nasce junto com cada pessoa, acoplado ao seu sexo genital. Nessa perspectiva, cada pessoa já nasce homem ou mulher e, como Deus “não erra” (seu “controle de qualidade” é absoluto), é totalmente impossível haver qualquer tipo de adulteração desse modelo binário básico. Se aparecem variações é por pura “pouca vergonha” de certas pessoas, indecentes e devassas que desafiam o próprio “poder de Deus”, com suas “escolhas pecaminosas”, realizadas sob influência do demônio... Cabe ao pastor reverter essas “escolhas malignas”, promovendo a “cura de pessoas trans”.
O erro, absolutamente crasso desse enfoque pseudo-bíblico, quase sempre revestido de um enfoque adicional pseudo-científico, é considerar que “identificação” é a mesma coisa que “escolha”. E não é.
Segundo o dicionário Houaiss, escolher implica em fazer opção entre duas ou mais pessoas ou coisas. Isso significa que, para haver escolha, deve haver necessariamente duas ou mais alternativas, ou seja, sem opções não pode haver escolhas.
Ainda segundo o Houaiss, identificar-se significa confundir-se com outrem (ou seja, com o próprio objeto de identificação, seja pessoa ou coisa.
Vemos assim claramente que, ao contrário do processo de “escolha”, o processo psicossocial de “identificação” não pressupõe nem envolve nenhum tipo de escolha. Existe apenas e tão somente um direcionamento firme e pontual do indivíduo, dirigido exclusivamente para o objeto de identificação.
Não há que se falar em escolha no processo de identificação porque, para o indivíduo que se identifica não há alternativas de escolha entre as quais ele deva optar, mas tão somente o objeto de identificação.
No processo de escolha, a relação do indivíduo com o objeto é cercada de dúvida: qual das alternativas existente será a melhor? Qual delas eu devo escolher?
No processo de identificação, a relação do indivíduo com o objeto é pautada na certeza: é com esse objeto que eu me identifico e ponto final. Podem haver milhares de outras opções, muito melhores e mais “atraentes”, em termos de escolha, do que o objeto com o qual a pessoa se identifica. Mas isso para ela é totalmente irrelevante, já que para ela só existe no mundo o objeto de identificação com o qual ela se identifica.
Não há que se falar, portanto, em “escolha de gênero”, já que não se trata de maneira nenhuma de um processo de escolha, mas de um processo de identificação.
Identificar-se, em termos de gênero, não significa de maneira alguma, escolher entre ser homem ou ser mulher, mas em mergulhar em uma dessas duas categorias, em deixar-se absorver pela própria categoria de gênero com a qual a pessoa se identifica. Em outras palavras, não existe a alternativa de “ser homem” para uma pessoa profundamente identificada com o “ser mulher”: ou se é, ou se é.
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