Até onde o fetiche e o autoerotismo são motivações poderosas na vida de pessoas transgêneras, em especial as pessoas transgêneras MtF (masculino transacionando para o feminino)? Se for feita uma enquete dentro do gueto, é mais provável que esmagadoramente prevaleça o “não”, junto com uma clara indignação por uma hipótese como essa estar sendo levantada.
Associar a transgeneridade com fetichismo e auto-erotismo sempre causou extremo furor entre ativistas, pesquisadores e profissionais de saúde, horrorizados com a ideia de que a condição transgênera pudesse resultar, ao menos em parte, da busca obstinada pela realização, em última análise, de uma parafilia, em que o objeto do desejo sexual desviado seria a própria pessoa autora do desejo, transformada num corpo de mulher.
Esse autoerotismo é, inclusive, tema de um dos trabalhos mais controversos dos últimos tempos na área dos Estudos Transgêneros . Na obra The Man Who Would Be Queen (O Homem Que Queria Ser Rainha), publicada em 2003, o psicólogo J. Michael Bailey criou uma tempestade com a divulgação da teoria que transexuais MtF podem desejar fazer a cirurgia de reaparelhamento genital não por acreditarem ter nascido no corpo errado, como reza o seu velho jargão, mas por se sentirem sexualmente excitadas com a ideia de se verem a si mesmas como mulheres.
Os estudos de Bailey foram profundamente influenciados por outro pesquisador, o Dr. Ray Blanchard, do notório Clarke Institute, de Toronto, Canadá. Aliás, foi o Dr. Blanchard que deu o nome de autoginefilia a essa condição clínica popularizada (e polemizada) pelo livro de Bailey.
O repúdio instantâneo da maior parte da comunidade de transexuais pela associação da transexualidade com uma simples manifestação de sexualidade parafílica bem mostra o pudor (e até mesmo o repúdio) de se considerar a hipótese da existência de um desejo sexual “desviado” e “perverso” na gênese da transexualidade. Esse pudor pela manifestação do desejo sexual é, aliás, muito comum entre transexuais MtF, ao contrário das travestis, que sempre declararam abertamente a busca da sua realização sexual como parte integrante da sua própria identidade.
Apesar desse “esforço de retórica nitidamente moralista” da comunidade trans para repudiar e combater fortemente a existência de qualquer traço de autoerotismo e/ou de fetichismo na raiz do fenômeno transgênero, há muitos fatos concretos que contribuem para demonstrar exatamente o contrário, ou seja, uma notória influência de motivações autoeróticas e/ou fetichistas na personalidade de mulheres trans.
Para a maioria das mulheres trans, não basta ser ou expressar-se como mulher. É necessário que elas sejam “A” mulher, atingindo estonteantes padrões de beleza física, difíceis até mesmo de ser atendidos por mulheres nascidas como fêmeas genéticas.
Essa idealização altamente erótica e sexista da “mulher que eu quero ser” põe em questão um ponto crucial na vida de grande parte das mulheres (e também de homens) trans: não serve ser e/ou se expressar como “mulher feia”; é preciso transicionar para tornar-se uma pessoa bonita, sensual, atraente e sex, numa clara demonstração de que há maior preocupação com uma suposta estética feminina do que propriamente com o ser e o ocupar o lugar de mulher na sociedade. Nessa busca desenfreada por uma conformidade com os estereótipos de mulher em vigor na sociedade, muitas mulheres trans são capazes de realizar dezenas de cirurgias e tratamentos feminizantes que muitas vezes resultam em intervenções corporais mutilantes e deformantes. Tudo para serem “mulheres cobiçadas”. Mas até que ponto, como estamos indagando neste artigo, mulheres cobiçadas, antes de mais nada, por elas próprias?
A enorme popularidade de concursos de beleza entre mulheres e homens trans, assim como o absurdo volume de acessos a páginas, sites e blogues da internet que tratam do transicionamento do ponto de vista estético/erótico/sensual são evidências que também ajudam a atestar o insistente grau de autoerotismo e fetichismo sexual existente dentro do gueto transgênero.
A verdade é que, para um grande número de mulheres trans, essa preocupação estética com a beleza física e a aparência vão muito além do que pode ser considerado uma legítima preocupação da pessoa em “passar com segurança” numa sociedade predominantemente cisgênera e, portanto, perigosamente transfóbica.
E da mesma maneira que elas buscam obstinadamente o seu mais perfeito encaixe no estereótipo de “mulher desejada”, também fazem de tudo para excluir e agredir candidatas à transformação MtF que estão nessa busca por motivos bem mais simples e prosaicos do que a idealização autoerótica e fetichista da mulher.
É aí que as ideias de Bailey e Blanchard podem trazer alguma luz aos debates, por mais controversas que sejam. Afinal de contas, não há algum em buscar, nas próprias transformações, a realização de uma imagem mais-do-que idealizada de mulher. Ou melhor, o único mal que há é negar insistentemente que essa busca autoerótica e fetichista não faz parte do repertório transgênero, e menos ainda do repertório da transexualidade.
3 comentários:
Eu já tinha pensado sobre esse assunto,apesar de nunca ter ouvido falar em autoginefilia.A maioria das pessoas que conheço,que se auto intitulam trans,principalmente as femininas,desejam nao ser mulheres,mas sim caricaturas de mulher.Querem tudo exagerado,mesmo se sujeitando a colocar silicone industrial no corpo.Eu por exemplo,faço o estilo mais natural,pois as mudanças que consegui foram apenas com hormonios.E já fui rotulada de tudo quanto é nome,desde cdzão até homem com peruca,apenas pelo fato de me recusar a erotizar meu corpo.Não preciso ter próteses de silicone imensas,nem industrial no corpo para ser mulher.Eu sou mulher,mesmo não estando dentro do padrão.Aliás esse padrão de trans gostosona nao foi imposto pela sociedade,mas pelo próprio meio trans.Agora eu entendo a raiva que certas feministas possuem do movimento trans.A maioria das ditas "mulheres trans",de mulheres não tem nada.Não passam de machos opressores,que querem erotizar o corpo das mulheres.
Na minha opinião, como mulher trans, não entendo qual seria o problema em se assumir um fetichismo como uma das bases ou impulsos para a transformação do corpo, a não ser aquela de ordem pseudo-moralista ou de separatividade como se quisesse tornar nítida uma diferença entre transexualidade e tavestilidade por parte de muitas transexuais. É claro que o mundo feminino, com todas as suas facetas, são elementos sedutores no desejo se querer apropriar-se de seus simbolos e expressar a mulher que se acalenta no coração. Tenho sim, certo fetiche pelas roupas, maquiagens e tudo mais sem que coim isso me considere mais ou menos mulher do que qualquer outra transexual. Minha transformação foi apenas hormonal e, mesmo sem os atributos de silicome, me acredito bem feminina!
As travesti sempre deixaram claro que suas motivações de mudanças corporais são sexuais. Não entendo o espanto.
Deve ser com as transexuais, que construíram sua identidade em oposição a isso.
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