A única justificativa aceitável para um homem não se travestir, em pleno século XXI, deveria ser o fato dele simplesmente não estar a fim de fazer isso. Entretanto, o mais comum continua sendo muitos homens viverem pressionados por um desejo incontrolável de se travestirem e simplesmente não se sentirem suficientemente empoderados para fazer isso, apesar da própria constituição do país assegurar a todas as pessoas o direito de expressar livremente a sua individualidade, em todas as suas dimensões.
Por que será que isso acontece? Por que tantos homens sufocam e reprimem duramente o desejo de se travestir?
Nos últimos 100 anos a mulher vem rompendo, uma a uma, com todas as absurdas interdições sociopolíticas que, há milênios, vinham impedindo que ela ocupasse o seu legítimo lugar na sociedade. Entre os direitos adquiridos com a chamada Revolução Feminista, a mulher autorizou-se vestir da maneira que bem entender, inclusive usando e abusando de roupas e acessórios do guarda roupa masculino.
Hoje em dia, qualquer mulher pode expressar, naturalmente, sem nenhum esforço emocional, tanto a sua “porção mulher” quanto a sua “porção homem” através do vestuário. Pouquíssimos homens, entretanto, têm a coragem de mostrar socialmente a sua “porção mulher”, vestindo-se e/ou assumindo posturas culturalmente definidas como próprias da mulher.
Enquanto, para mulher, tornou-se um triunfo pessoal e motivo de orgulho poder expressar (e realizar!) a sua “porção homem”, para o homem continua sendo motivo de vergonha, razão de deboche e vexame manifestar publicamente a sua “porção mulher”, seja usando roupas e acessórios considerados femininos, seja cumprindo papéis socialmente reservados à mulher.
Ninguém chama as mulheres pejorativamente de “travestis” (ou “crossdressers”) quando elas usam roupas, calçados ou cortes de cabelo tipicamente considerados como masculinos. No entanto, basta que um homem resolva usar uma saia em público para que meio mundo lhe caia na cabeça, classificando-o imediatamente de “viado” como se travestir-se fosse o mesmo que ser homossexual.
Os homens seriam muito mais felizes se pudessem manifestar livremente a sua personalidade através das roupas que usam, sem pensar que, se fizerem isso, há algo errado com eles. Se houvesse liberdade de expressão para as masculinidades, a sociedade iria se surpreender com o grande número de homens que gostam de manicures e pedicures ou se de maquiar.
Há mais de 30 anos, quando usar brincos era algo absolutamente proibido entre “homens de verdade”, eu fui um dos primeiros caras a usar em ambas as orelhas. Hoje eu tenho um alargador tribal de uma polegada em cada orelha. Tive que vencer, primeiro, a minha própria resistência aos olhares curiosos e inquisidores ao meu respeito. Com o tempo, eles deixaram de ser ameaçadores para se tornar engraçados. Fico imaginando o que eles devem pensar ao meu respeito e acho graça. As pessoas acham difícil de me entender, e os homofóbicos têm medo de comentar! As pessoas mais velhas eu posso compreender e aceitar, mas ainda fico bastante indignada com algumas reações de gente que é jovem... pelo menos na aparência.
Felizmente, algumas coisas mudaram com o tempo. Há sessenta anos, eu fui duramente censurada e até proibida pelos meus pais de usar uma simples camiseta vermelha e sandálias havaianas. Mas em pleno século XXI, chega a ser absurdo o preconceito social contra homens que se vestem com roupas de cores consideradas “femininas”. Da mesma forma, tecidos macios, delicados ou graciosamente estampados continuam a ser de uso exclusivo da mulher.
Há 100 anos, se uma mulher usasse calças justas e/ou maquiagem de qualquer espécie, seria imediatamente taxada de prostituta. Calças justas, por outro lado, foram roupa originalmente masculina: as mulheres estavam proibidas de usa-las, e agora se tornou o oposto. Como há 300 anos somente os homens tinham autorização para usar cosméticos e salto alto.
É a fragilidade masculina que impede os homens de usarem calças justas, salto alto e cosméticos hoje em dia. Medo de não “parecerem” suficientemente homens, de serem “confundidos com viados”. Ou, pior ainda, de serem confundidos com a mulher.
Por causa de tolices como essa, o espaço da masculinidade está encolhendo cada vez mais. Enquanto o espaço da mulher é cada vez mais amplo e sem fronteiras, o espaço da masculinidade é cada vez mais restrito, mais contido, mais fechado e mais vigilante sobre as suas próprias manifestações. Diante de um quadro tão fortemente repressivo, não devemos nos espantar com as crescentes manifestações de agressividade masculina. Talvez seja a única forma que o homem ainda encontre de se afirmar como homem ou, talvez, de manifestar a dor de não poder expressar livremente a sua própria individualidade.
(Letícia Lanz)
(Letícia Lanz)
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