Cheque de portas: - você se considera uma pessoa transgênera ou é um “cisgênero enrustido”? Uma coisa é a pessoa ser “transgressora de gênero”, querendo consciente e deliberadamente detonar com o rótulo de gênero que lhe foi pregado à testa quando nasceu e com o qual se sente totalmente desajustada. Outra coisa é a pessoa dizer que “pertence” ao outro gênero e que é, portanto, apenas uma espécie de ET, deslocada do seu planeta natal.
A primeira hipótese diz respeito à constatação da miséria que significa existir apenas duas e somente duas alternativas – homem ou mulher – para abrigar as sete bilhões de pessoas que habitam este planeta. Social, cultural, política e juridicamente falando, não existe nenhuma outra alternativa de enquadramento além dessas duas: - ou se é homem ou se é mulher e não se fala mais nisso.
Problemaço para quem não se sente, nem pertencente, nem confortável em nenhuma dessas duas categorias. Problemaço também de “identificação”, já que o método que a sociedade utiliza para classificar pessoas numa ou noutra categoria continua baseado exclusivamente no órgão genital de macho ou de fêmea que a pessoa traz entre as pernas ao nascer. E não existe nenhum outro modelo mais “convincente” do que esse procedimento tosco de checar os genitais da pessoa.
Fora a baboseira bíblica e a xaropada pseudocientífica, de que o órgão genital determina o gênero, até hoje não consegui encontrar nenhum modelo fundamentado, inequívoco e convincente do que é ser homem ou ser mulher (ou ainda do que é ser transexual, travesti, crossdresser, não-binário, coisa nenhuma ou o escambau).
A maioria das pessoas vive mergulhada em ficções de si próprias |
A maioria das pessoas vive mergulhada em ficções de si próprias, tentando desesperadamente “projetar” no espelho da sociedade uma imagem pessoal inteligível e aceitável da identidade de gênero – masculina ou feminina – em que foram arbitrariamente enquadradas ao nascer, exclusivamente em função do seu órgão genital.
A essa suposta “maioria” cisgênera, que se esforça tanto para mostrar ser aquilo que a sociedade diz que ela é, se contrapõe uma suposta minoria transgênera, formada por pessoas consideradas rebeldes e não conformes às normas de conduta de gênero, com base nas quais um indivíduo nascido macho tem que se apresenta socialmente como homem, assim como um indivíduo fêmea tem que se apresentar como mulher. Por transgredirem essas normas, as pessoas transgêneras são tratadas como transgressoras, deliquentes ou doentes, recebendo as duras punições reservadas pela sociedade a quem não vive de acordo com os seus dispositivos de controle.
Diante desse quadro tão ameaçador à própria integridade pessoal de quem se arrisca a transgredir o dispositivo binário de gênero, fica quase impossível viver sem uma identidade socialmente inteligível e politicamente legitimada, ou seja, sem “parecer ser” homem ou “parecer ser” mulher.
Até Judith Butler, uma das mais ardorosas críticas da precariedade e inconsistência dos modelos identitários, reconhece a identidade como um “mal ainda necessário”. Daí a submissão inerte e passiva da maioria das pessoas ao “nivelamento de gênero”, onde muitos traços individuais altamente expressivos são duramente reprimidos e devem permanecer recalcados a fim da pessoa atender aos estereótipos da categoria de gênero em que foi classificada ao nascer.
É
graças, portanto, a uma intensa repressão e a uma contínua vigilância e terrorismo de gênero que as pessoas são treinadas para ser e se mantêm como homem ou como mulher ao longo da vida |
É graças, portanto, a uma intensa repressão e a uma contínua vigilância e terrorismo de gênero que as pessoas são treinadas para ser e se mantêm como homem ou como mulher ao longo da vida. Exatamente como preconizou Simone de Beauvoir, ninguém nasce nem homem nem mulher, mas é obrigado a aprender a ser.
Chamo esse fenômeno de “riachuelização” da vida, em alusão às grandes redes de lojas que, tal como a sociedade, reduzem a duas, e a somente duas, as possibilidades dos seus clientes: ou o departamento masculino ou o departamento feminino.
Cada pessoa nasce tão original como uma criação de Jean Paul Gaultier, mas é forçada, em razão do seu órgão genital, a se tornar um produto fabricado em série, uma cópia obsessiva-compulsiva de uma das duas categorias oficiais de gênero: homem ou mulher. Como diz Judith Butler, a se tornar uma “paródia” de uma música que absolutamente nunca teve uma partitura original, uma vez que gênero não é mais do que a repetição, contínua e compulsiva, dos modelos estereotipados de gênero estabelecidos pela sociedade.
Sou uma pessoa transgênera porque não me ajusto em nenhuma das duas categorias identitárias oficiais de gênero. Como digo e repito sempre, não sou homem, nem mulher, nem trans: sou Letícia Lanz...
Desde cedo, tive que encarar uma briga ferrenha com a sociedade por um “lugar existencial”, um modo culturalmente aceitável para eu estar no mundo, sem ter que “parecer ser” homem ou mulher, uma vez que nunca me enquadrei em nenhum desses dois códigos de conduta de gênero oficialmente aceitos. A minha grande questão existencial sempre foi como continuar sendo uma criação original (um Jean Paul Gaultier...) em um mundo em que, para eu ser aceita e integrada à sociedade, teria que me submeter a um permanente processo de “riachuelização”.
Muitas pessoas que se dizem trans, porém, não só se sentem desajustadas e não conformes com a categoria de gênero em que foram enquadradas ao nascer, como expressam com veemência a convicção de pertencerem, inequivocamente, à categoria oposta, com o conhecido discurso de mulher “presa” em corpo de homem ou de homem “preso” em corpo de mulher.
Essa “obsessão identitária” faz da pessoa não uma pessoa transgênera, mas uma espécie de pessoa CISGÊNERA ENRUSTIDA. Não é à toa que a medicina classificou essas pessoas de “transexuais”, por serem portadoras de transtornos mentais que as levavam a se identificar como sendo pessoas “do outro sexo”.
Não se trata de julgar ou condenar quem quer que seja que, na condição de pessoa transgênera, tenha o firme desejo de se tornar 100% uma pessoas cisgênera heterossexual, perfeitamente integrada à sociedade. Aliás, a mesma orientação sexual ditada pela regra heteronormativa que também vigora absoluta na sociedade: - se homem, você tem que querer transar com mulher e, se mulher, tem que querer transar necessariamente com homem.
Dentro do gueto transgênero, tive igualmente que encarar outra briga ferrenha para escapar da não menos sutil e sacana “heteronormatização” da transgeneridade em que, se uma pessoa se expressa na sociedade como mulher deve, necessariamente, demonstrar atração sexual por homens. Ou seja, dentro do gueto transgênero, para ser aceita como transgênera, a pessoa tem que mostrar credenciais heteronormativas! Translésbicas (meu caso) ou transgays são pessoas absolutamente mal vindas, pois “transgridem” a transgressora “ordem” transgênera!
Problemaço para alguém como eu, que não sou homem nem mulher. Que me apresento socialmente como mulher e, por isso mesmo, deveria gostar de homem mas gosto de mulher.
Mas não tenho a menor intenção de “ficar bem na foto”, estereotipada e rôta, de identidades que não significam coisa nenhuma além de convenções sociais ultrapassadas. Que precisam, aliás, ser urgentemente superadas.
A riachuelização transforma cada pessoa em mais uma peça de roupa do departamento masculino ou feminino dessa imensa loja de departamentos chamada sociedade. |
Esse é o preço que eu tenho que pagar por não estar disposta a continuar refém da “riachuelização” da vida, cedendo à pressão para o “nivelamento de gênero” exercida até mesmo dentro do próprio gueto, com o objetivo claro de me fazer abdicar da expressão da minha individualidade para me tornar “mais uma peça de roupa” do departamento feminino ou masculino de uma imensa
loja de departamentos chamada sociedade.
loja de departamentos chamada sociedade.
Cisgênero-enrustido é um termo que eu cunhei, sim, que eu uso e vou continuar usando na minha cruzada pela desconstrução do dispositivo binário de gênero. Embora esse termo, ao que parece, continue causando arrepios em muitas pessoas trans que, na verdade, se reconhecem “mulher cisgênera” ou “homem cisgênero”, e não como pessoas transgêneras (embora eu acredite que elas nem sabem o que é isso, mas vá lá).
Querer desesperadamente ser homem ou ser mulher – e enquadrar-se nessas categorias da forma mais absoluta possível – corresponde a defender um sistema que até hoje só serviu para gerar cruéis hierarquias e terríveis desigualdades entre os seres humanos. É preciso ser muito egoísta, muito voltado para o próprio umbigo, muito alienado das coisas que se passam no mundo ao redor, para defender um sistema arbitrário, podre, decadente e hipócrita como esse.
Basta um pouco de raciocínio linear simples, esse que a gente usa para fazer contas, para entender que o dispositivo binário de gênero é a fonte de todo os sofrimentos impostos às pessoas transgêneras. No entanto, cisgêneros enrustidos, em vez de usarem o cérebro, usam pedras para contestar qualquer pessoa – eu encabeçando a lista – que proponha uma discussão fora das ideias patriarcais-machistas sobre identidade de gênero, não poupando adjetivos e expressões chulas para desqualificar, desautorizar e desmoralizar esse debate, como forma de se verem livres da tarefa elementar de pensar.
A revolta que o termo tem causado nessas pessoas devia fazê-las pensar no seu comportamento, já que tudo que desejam é serem aceitas como membros de um clube que jamais as aceitou – e que jamais as aceitará – enquanto existir o dispositivo binário de gênero – o mais famigerado e repressivo mecanismo de controle até hoje criado pela sociedade humana.
Um comentário:
Fataço!
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