Tenho horror de rótulos, de qualquer tipo de rótulo, pois é através dos rótulos que a sociedade nos controla como indivíduos e como grupos, impondo-nos ser quem ela quer que sejamos, de acordo com o modo como ela acha que devemos viver e conduzir as nossas vidas.
Odeio particularmente os rótulos identitários que promovem a radical separação e categorização dos seres humanos em função de um número ínfimo de variáveis e atributos, eleitas sabe-se lá como, em razão das razões mais malucas e estrambóticas e das formas mais metafísicas e transcendentais possíveis.
Um rótulo identitário é produzido a partir de “descrições e ilações” que, apesar de absolutamente parciais e parcimoniosas, têm sempre pretensões universais e universalizantes de afirmar categoricamente como pessoas classificadas debaixo da mesma identidade são e se comportam ou, em caráter normativo, como deveriam ser e se comportar.
Assim, apesar de ser uma ultrassimplificação grosseira e mal enjambrada de quem é a pessoa humana, um rótulo identitário adquire o status de entidade suprema, capaz de substituir a própria pessoa na tarefa de dizer quem ela é, o que quer e como deve viver sua vida.
É por isso que eu odeio rótulos de gênero. Rejeito terminantemente a ideia, tola e simplista, de que as outras pessoas possam saber tudo sobre mim e tirar conclusões ao meu respeito através de uma “simples mirada” em um rótulo identitário que tenha sido colado em minha testa ou que eu própria tenha colado, de livre e espontânea vontade (aff...). No meu caso, a essa altura da vida, eu já estou quase imune a essa última possibilidade.
Os poderes constituídos adoram rotular pessoas e grupos não exatamente para lhes conceder direitos e vantagens mas para mantê-los sob estrita vigilância e controle, particularmente quando se trata de grupos de pessoas abertamente transgressoras de normas sociais de conduta, como é o caso da população transgênera em relação às normas binárias de gênero.
Da mesma forma, os movimentos identitários também adoram classificar e estereotipar seus membros, como brilhantemente denunciou Judith Butler na sua obra seminal Gender Trouble. Ela afirma que, ao exigirem que seus membros correspondam estritamente aos padrões estabelecidos pelo grupo, os movimentos identitários acabam criando (reproduzindo na prática) as identidades de que se dizem representantes.
Você só é aceita e só “pertence” a um desses grupos se agir de acordo com os padrões identitários e comportamentais estabelecidos pelo próprio grupo. Se o seu perfil estiver fora dos parâmetros do grupo, você nem entra nele ou, se conseguir entrar, será pressionado de todas as formas para adequar-se a eles ou, se resistir, acabará sendo expulsa, como eu própria já fui algumas vezes. Um grupo identitário de transexuais vai repelir veementemente a presença de “dragqueens”, que não chegam chegam sequer a ser legitimadas como pessoas trans de acordo com os padrões defendidos por elas.
Por outro lado, qualquer pessoa será marginalizada e excluída de um grupo se tentar pertencer simultaneamente a outro(s) grupo(s) cujos parâmetros sejam considerados “em conflito” com os padrões do grupo em questão. Até pouco tempo atrás, não se admitia, por exemplo, que transexuais MtF pudessem ser homossexuais (gays ou lésbicas). Para ser transexual, a pessoa deveria ser exclusivamente heterossexual.
O argumento para o uso de rótulos identitários dentro do gueto trans continua sendo a velha história de “sensibilizar” os poderes constituídos para a adoção de políticas públicas voltadas para as pessoas debaixo de um mesmo rótulo. Mas será que o rótulo é realmente necessário para identificar pessoas e, em função dessa identificação, capacitá-las a exigir direitos e políticas públicas adequadas ao seu perfil identitário?
Definitivamente, não é isso que nos tem mostrado a realidade. Muito ao contrário, a adoção de rótulos identitários degradantes e degradados do ponto de vista sociopolítico-cultural só tem feito aumentar o estigma que paira sobre a população trans.
Infelizmente, as travestis ainda não deixaram de ser mortas por se reconhecerem e se afirmarem como travestis... Pelo contrário, a ameaça parece ficar ainda maior e mais presente quando isso acontece.
Por isso não compreendo como muitas pessoas trans, inclusive lideranças e formadoras de opinião, continuam investindo pesado na continuidade do uso de rótulos identitários, baseadas no surrado argumento de que é necessário “mostrar” ao poder público a existência das transidentidades – leia-se: das identidades de transexual e travesti – uma vez que, para essas pessoas parece não existir outras transidentidades fora desse binômio tão carcomido e desgastado, em todos os sentidos.
Mesmo aquelas mulheres trans que se identificam como 100% mulheres, ainda fazem questão – e aqui eu realmente não compreendo exatamente por que ou para que – de serem paralelamente reconhecidas como transexuais. Talvez para afirmar o que na cabeça delas parece ser uma espécie de “linhagem nobre” já que cada vez dá menos status alguém se reconhecer como travesti ou, pior ainda, dizer que sua jornada de transformação teve sua origem no travestismo, no crossdressing ou como dragqueens.
Como talvez muita gente já tenha percebido, identificar-se como travesti é um comportamento cada vez mais raro, em virtude da sensível e crescente perda de status dessa identidade, além do progressivo e discreto esvaziamento do termo, principalmente por transexuais que perseguem a afirmação e a hegemonia da identidade transexual no Brasil.
Apesar do esforço contínuo da sociedade para classificar e rotular as pessoas – além, é claro, dos próprios movimentos identitários – identidade de gênero não pode ser atribuída de fora para dentro: é você que diz quem você é, ninguém mais.
E a luta, como é preciso repetir sempre o mote do meu amigo Antonio Marcos Quinupa, não é pela afirmação de “sujeitos de direito”, através do reforçamento de identidades de gênero, mas pelos “direitos dos sujeitos”, sejam quais forem as suas identidades. Mas isso é algo absolutamente impossível de ser entendido por alguém que não consegue olhar além do próprio umbigo.
Respeito inteiramente as pessoas que ainda precisam de uma identidade de gênero, seja para mostrar que têm, seja para se sentir menos sós, ao serem acolhidas por suas e seus “iguais” graças à identidade de gênero assumida.
Mas vou continuar sustentando que ninguém precisa de rótulo para dizer aos outros quem é. Basta você ser e todo mundo verá quem você é.
Um comentário:
Penso exatamente assim!
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