Cena do filme "A Pele Que Habito", de Pedro Almodóvar. |
O termo transexual é absolutamente inadequado para designar identidades gênero-divergentes.
Explico: quando esse termo foi criado, na década de 1950 do século passado, sexo e gênero ainda eram vistos e tratados como uma única e só coisa. Assim, quando um homem, que era a mesma coisa que um macho biológico, manifestava desejo de se apresentar socialmente como mulher, sua demanda era entendida pela sociedade – e particularmente pela medicina – como uma necessidade de troca do seu sexo genital.
Dentro dessa perspectiva, a mudança de homem para mulher, só era possível caso o sexo genital da pessoa mudasse de macho para fêmea, ou seja, se o pênis fosse substituído por uma vagina. Acompanhando o raciocínio da medicina, a Justiça também entendia as coisas da mesma maneira. Só seria possível mudar o nome e o sexo de uma pessoa na sua documentação se ela passasse por uma cirurgia de reaparelhamento genital.
Há implícito nesse raciocínio, absolutamente linear e simplista, o zelo absoluto pela manutenção do binário homem-mulher. Para a sociedade, não existia (como ainda não existe) a possibilidade de outra categoria de pessoa além de homem e mulher. E a classificação da pessoa em uma dessas duas categorias era (como continua sendo) determinada pela simples presença no indivíduo do órgão genital de macho ou de fêmea.
Transexual, assim, era descrita, como ainda continua a ser, no CID-10 e no DSM-V, como um transtorno mental, condição clínica em que o indivíduo macho manifesta o desejo ardente de se expressar como mulher ou o indivíduo fêmea pelo de ser homem. E como o sexo genital era considerado determinante do próprio destino da pessoa nesse mundo (sexo é destino, afirmou Napoleão e depois Freud...), a única maneira de se ajudar o "doente" transexual seria mudando as suas características genitais primárias (órgãos genitais) e secundárias (seios, pelagem corporal, voz, etc.).
Tudo em nome de se manter intocadas as duas categorias homem e mulher. Reparem: "doente" é o indivíduo, não a sociedade. A
norma social que determinou o enquadramento de machos como homens e
fêmeas como mulheres permanece intocada, à margem de qualquer
consideração crítica.
Essa visão essencialista e biologizante reinou absoluta até meados da década de 1960, quando despontou o conceito de gênero, questionando firme essa suposta “natureza biológica” do indivíduo homem e do indivíduo mulher na sociedade.
Os precursores estudos de gênero da historiadora norte-americana Joan Robinson, já apontavam seriamente para o embuste histórico de se considerar sexo biológico como categoria social “em si mesmo”.
Assim, o feminismo da segunda onda descobre e apregoa aos quatro ventos que o binarismo sexual macho-fêmea, um mero atributo natural da nossa espécie, havia sido sorrateiramente apropriado pela sociedade com o objetivo claro e explícito de dividir os seres humanos em duas categorias diametralmente opostas, hierarquizá-los e atribuir-lhes tanto expectativas quanto papéis sociopolíticos, culturais e econômicos.
Chamou-se de “gênero” a esse elenco de atribuições, vantagens e interdições sociopolíticas e culturais impostas aos seres humanos em razão da sua genitália – e exclusivamente em função dela.
Desde então, não cola mais, pelo menos para quem é capaz de pensar um pouquinho, a ideia de que homem e mulher já nascem prontos, determinados pelo órgão genital que trazem entre as pernas.
E a palavra transexual, por sua vez, perde inteiramente, tanto a natureza patológica quanto a forma proposta de “cura”. Com a criação dessa nova categoria de análise - o gênero - ficou evidente que mudança de gênero não tem nada a ver com mudança de sexo.
Que é possível, sim, uma pessoa nascida com genitália de macho não se identificar com a categoria de gênero masculino desejando, muito ao contrário, expressar-se como mulher. E, melhor de tudo, para desespero dos biólogos, sociólogos essencialistas e fundamentalistas em geral, conseguindo fazê-lo com pleno êxito.
O termo transexual, portanto, é uma anomalia histórica que precisa e deve ser reparada, pois não é mudando o sexo genital de alguém que se mudará a sua identidade de gênero. Não é verdade, em absoluto. O gênero é algo totalmente desligado do sexo, exceto pela sua apropriação – indébita – pela sociedade, que dele se vale para “naturalizar” as atribuições que deseja impor aos seus membros machos e fêmeas.
Exemplo disso é o filme “A Pele Que Habito”, de Almodóvar, em que, como vingança, o médico vivido por Antonio Banderas muda inteiramente o corpo do homem que abusou da sua filha, até torná-lo inteiramente um corpo de mulher sem, contudo, conseguir mudar em nenhum momento a sua identidade de gênero masculina. Definitivamente, o corpo não faz o gênero.
2 comentários:
Perfeito Leticia! Ainda assim as pessoas podem mudar seus genitais e corpos como quiserem, sem que isso influencie direito ou indiretamente em suas identidades de gênero. Infelizmente com ou sem cirurgias de reaparelhamento genital, essas pessoas quase sempre são forçadas a viver uma condição de "identidade secreta" novamente, como quando viviam armarizadas, mas diferente. Agora evitam (quando fisicamente possuem essa capacidade) que descubram seu passado, muitas vezes por medo de rejeição, de chacota, do preconceito e das muitas violências que são carregadas por ele. Esta ação é de certa forma trágica, pois consiste numa rejeição a si própria, a sua verdade, uma violência atentada contra si na tentativa desesperada de evitar a violência atentada pelo outro. - N. Cole
A Mente é imune ao corpo, o corpo não muda por causa da Mente, mas a Mente mesmo assim teima em querer ter outro corpo...
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