segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Nada menos queer do que tentar definir o queer

Nada menos queer do que tentar definir o queer, já que ele se situa exatamente na contramão das normas, padrões, modelos e definições, num intenso trabalho de desconstrução de tudo que limita, impede, bloqueia, interdita e destrói a possibilidade de livre expressão do ser humano em termos de gênero, sexualidade e desejo. David Halperin aproxima-se bastante de algo próximo de uma definição na sua clássica afirmação de que o “queer é, por definição, o que está em desacordo com o normal, o legal, o dominante. Necessariamente não há nada em particular a que o queer se refira. É uma identidade sem uma essência” (1995, p. 62).

Até recentemente, o termo queer era, na melhor das hipóteses, uma gíria para homossexual e, na pior delas, uma agressão verbal desonrosa, pejorativa e homofóbica, dirigida a pessoas homossexuais nos Estados Unidos, algo equivalente a chamar uma pessoa de “bicha” ou “viado” no Brasil. Esse xingamento, que “pode ser traduzido por estranho, talvez ridículo, excêntrico, raro, extraordinário” (Louro, 2004, p. 38), acabou sendo apropriado de forma positiva e afirmativa pelos meios acadêmicos norte-americanos, passando a representar um novo campo de estudos, formado a partir da articulação e diálogo entre diversas concepções filosóficas, teorias e ideias, tendo como alvo principal a investigação sobre “o que é normal” em termos de gênero, sexualidade e desejo, como também na articulação desses elementos entre si.

Nossas concepções a respeito de sexo, gênero, corpo, orientação sexual e, principalmente, sobre o que é normal são verdades socialmente construídas“. De acordo com a Teoria Queer, todas nós, o tempo todo, estamos desempenhando/encenando/performatizando discursos, narrativas e estruturas de masculinidade, feminilidade, heterossexualidade, transgeneridade, normalidade, etc. A Teoria Queer põe em cheque categorias consideradas óbvias (homem, mulher, latino, gay, lésbica, feminino, lésbica), oposições (homem x mulher, herossexual x homossexual, transgênero x cisgênero), ou equações (gênero=sexo) sobre as quais repousam as noções convencionais de identidade e sexualidade (Henessy, 1993).

A investigação sobre o que é normal requer a análise de inúmeras questões relacionadas a como o “normal” surge, se estabelece e é mantido na nossa sociedade; quem é excluído ou oprimido em razão dessa “normalidade” e de que forma as “normas” reguladoras promovem essa exclusão e opressão. Segundo Leandro Colling, o queer pode ser visto como “uma prática de vida que se coloca contra as normas socialmente aceitas” (Colling, 2002).

Segundo o sociólogo Richard Miskolci, “a Teoria Queer emergiu nos Estados Unidos em fins da década de 1980, em oposição crítica aos estudos sociológicos sobre minorias sexuais e gênero, em departamentos normalmente não associados às investigações sociais - como os de Filosofia e crítica literária” (Miskolci, 2009). Embora tenha fortes raízes nos estudos feministas e nos estudos gay e lésbicos, os horizontes da teoria queer vão muito além do foco na homossexualidade, abrigando qualquer tipo de expressão sexual ou identidade de gênero considerada fora das categorias e padrões oficialmente aceitos pela sociedade.

É também Miskolci quem afirma que “teórica e metodologicamente, os estudos queer surgiram do encontro entre uma corrente da Filosofia e dos Estudos Culturais norte-americanos com o pós-estruturalismo francês, que problematizou concepções clássicas de sujeito, identidade, agência e identificação. Central foi o rompimento com a concepção cartesiana (ou Iluminista) do sujeito como base de uma ontologia e de uma epistemologia. Ainda que haja variações entre os diversos autores, é possível afirmar que o sujeito no pós-estruturalismo é sempre encarado como provisório, circunstancial e cindido” (Miskolci, 2009, p.152).

As ideias de Michel Foucault exerceram profunda influência na formulação da teoria Queer. Segundo ele, temos vivido mergulhados em múltiplos discursos sobre a sexualidade, pronunciados pela igreja, pela psiquiatria, pela sexologia, pelo direito. Empenha-se em descrever esses discursos e seus efeitos, analisando não apenas como, através deles, se produziram e se multiplicaram as classificações sobre as “espécies” ou “tipos” de sexualidade, mas também como se ampliaram os modos de controlá-la. Tal processo tornou possível, segundo ele, a formação de um "discurso reverso", isto é, um discurso produzido a partir do lugar que tinha sido apontado como a sede da perversidade, como o lugar do desvio e da patologia: a homossexualidade. Mas Foucault ultrapassa amplamente o esquema binário de oposição entre dois tipos de discursos, acentuando que vivemos uma proliferação e uma dispersão de discursos, bem como uma dispersão de sexualidades” (Louro, p. 152).

Assim como a construção discursiva das sexualidades, exposta por Foucault, também é fundamental para a teoria queer a operação de desconstrução, proposta por Jacques Derrida. Segundo ele a lógica ocidental funciona a partir de binarismos ou pares de opostos. O termo inicial do binário tende sempre a ser visto como superior, enquanto o outro é visto como o seu derivado, de caráter inferior.
Derrida afirma que essa lógica poderia ser abalada através de um processo desconstrutivo que estrategicamente revertesse, desestabilizasse e desordenasse esses pares.

Desconstruir um discurso implicaria em minar, escavar, perturbar e subverter os termos que afirma e sobre os quais o próprio discurso se afirma. Portanto, ao se eleger a desconstrução como procedimento metodológico, está se indicando um modo de questionar ou de analisar e está se apostando que esse modo de análise pode ser útil para desestabilizar binarismos linguísticos e conceituais, ainda que se trate de binarismos tão firmes e arraigados na nossa cultura como homem/mulher ou masculinidade/feminilidade. Através do processo de desconstrução, pode-se mostrar que cada pólo contém o outro, de forma negativa, oposta, desviada ou negada. A desconstrução mostra que, para adquirir sentido, cada pólo depende do outro, assim como carrega vestígios dele em sua própria constituição (Louro, pag. 153).

O método de abordagem Queer, essencialmente desconstrutivista e pós-estruturalista, tenta ouvir “silêncios profundos”, vasculhar não-ditos, explorar lacunas e ausências propositais até transforma-los em discursos eloquentes. O queer disseca estruturas tidas como “naturais” para denunciá-las como “social e culturalmente construídas”.


Judith Butler, uma das mais destacadas teóricas queer, ao mesmo tempo que reafirma o caráter discursivo da sexualidade, produz novas concepções a respeito de sexo, gênero e desejo. Butler afirma que as sociedades constroem normas que regulam e materializam o sexo dos sujeitos e que essas "normas regulatórias" precisam ser constantemente repetidas e reiteradas para que tal materialização se concretize. Contudo, ela acentua que "os corpos não se conformam, nunca, completamente, às normas pelas quais sua materialização é imposta", daí essas normas precisarem de ser constantemente citadas, reconhecidas em sua autoridade, para que possam exercer seus efeitos". As normas regulatórias do sexo têm, portanto, um caráter performativo, isto é, têm um poder continuado e repetido de produzir aquilo que nomeiam e, sendo assim, elas repetem e reiteram, constantemente, as normas dos gêneros na ótica heterossexual.

Judith Butler
Judith Butler toma emprestado da linguística o conceito de performatividade para afirmar que a linguagem que se refere aos corpos ou ao sexo não faz apenas uma constatação ou uma descrição desses corpos, mas, no instante mesmo da nomeação, constrói, "faz" aquilo que nomeia, isto é, produz os corpos e os sujeitos. Esse é um processo constrangido e limitado desde seu início, pois o sujeito não decide sobre o sexo que irá ou não assumir; na verdade, as normas regulatórias de uma sociedade abrem possibilidades que ele assume, apropria e materializa. Ainda que essas normas reiterem sempre, de forma compulsória, a heterossexualidade, paradoxalmente, elas também dão espaço para a produção dos corpos que a elas não se ajustam. Esses serão constituídos como sujeitos "abjetos", aqueles que escapam da norma. Mas, precisamente por isso, esses sujeitos são socialmente indispensáveis, já que fornecem o limite e a fronteira, isto é, fornecem "o exterior" para os corpos que "materializam a norma", os corpos que efetivamente "importam".

Em Problema de Gênero (1990), sua obra mais influente, Judith Butler argumenta que o feminismo cometeu um erro ao tentar afirmar que as mulheres eram um grupo com características e interesses comuns. Essa abordagem, diz Butler, promove "uma regulação inconsciente e uma reificação das relações de gênero", reforçando o binarismo de gênero no qual nós, seres humanos, somos divididos em dois grupos bem definidos, distintos e opostos: - mulheres e homens. Em vez de abrir possibilidades para alguém escolher livremente sua própria identidade individual, segundo Butler o feminismo tinha estreitado mais ainda o horizonte de opções.

Ela observa que, apesar do feminismo ter rejeitado a ideia de que sexo é destino, acabou contribuindo com o patriarcado ao assumir que os gêneros masculino e feminino são culturalmente construídos sobre os corpos do “macho” e da “fêmea”, não deixando espaço para qualquer outro tipo de escolha, diferenciação ou resistência por parte dos indivíduos, o que resulta na confirmação do sexo como sendo realmente um destino inexorável.

Na contramão dessa abordagem, Butler defende “as posições históricas e antropológicas que entendem o gênero como uma relação entre sujeitos socialmente constituídos em contextos especificáveis”. Segundo Butler, gênero não deve ser visto como um atributo fixo de uma pessoa, mas como uma variável fluída, que se desloca no tempo e no espaço, apresentando diferentes configurações, em diferentes contextos e épocas.

O próprio fato das mulheres e dos homens poderem eventualmente afirmar que se sentem “mais ou menos mulher" ou "mais ou menos homem" mostra, conforme aponta Butler, que a identidade de gênero é uma aquisição cultural, não uma herança biológica.

Butler argumenta que o sexo (macho, fêmea) é visto como responsável pelo gênero (homem/mulher ou masculino/feminino), que é visto como responsável pelo desejo (orientação sexual em relação ao outro sexo). Isso é visto como uma espécie de continuum, onde as partes se articulam sempre de maneira linear e direta. A abordagem de Butler – em parte inspirada por Foucault – consiste basicamente em desconstruir as supostas ligações entre esses elementos, de modo que o gênero e o desejo permaneçam flexíveis, flutuando livremente, sem nenhuma relação compulsória com o sexo biológico.

Em uma de suas mais conhecidas asserções, Butler afirma que "não há identidade de gênero por trás das expressões de gênero; “... a identidade é performativamente constituída pelas próprias ‘expressões’ que são vistas como sendo seus resultados” (Gender Trouble, p. 25). Em outras palavras, longe de ser uma característica natural e universal do ser humano, o gênero é performático, ou seja, é o que a gente faz e o modo como culturalmente fazemos.

Butler sugere que condições e atributos artificiais tornaram-se naturais mediante um intenso e contínuo processo histórico de “naturalização”, de tal forma que configurações e códigos de conduta de gênero, arbitrariamente criadas pela sociedade, acabaram produzindo um efeito hegemônico e passaram a ser vistas, ao longo do tempo, como "fenômenos naturais".

Butler argumenta que passamos nossas vidas permanentemente engajados em atos performativos de gênero, e que isso é tão mecânico e automático que a maioria de nós sequer se dá conta de estar apenas fazendo uma performance. Essa ideia da identidade não conectada a nenhuma "essência", a nenhum “eu” interior, mas continuamente produzida e reproduzida graças ao caráter performativo do gênero, é uma das ideias-chave de Butler e, por extensão, na teoria queer. Vista sob esse ângulo, a identidade de gênero não pressupõe a existência de nenhum “eu autêntico” interno, sendo muito ao contrário, segundo Butler, apenas o efeito dramático (e não a causa) de todos os atos performáticos de gênero que todos nós desempenhamos, compulsiva e compulsoriamente, contínua e ininterruptamente, ao longo das nossas vidas.

Mas ela também argumenta que não tem que ser assim, sugerindo que os limites performáticos de qualquer identidade podem, potencialmente, ser rompidos e reinventados pelo próprio “performer”. Em vez de propor uma visão utópica, sem nenhuma ideia de como podemos chegar a tal estado, Butler pede ação subversiva no presente: "Gender Trouble" - a mobilização, a confusão subversiva, e a proliferação de gêneros - portanto, de identidades.

A teoria queer constitui-se menos numa questão de explicar a repressão ou a expressão de uma minoria homossexual do que numa análise da figura hetero/homossexual como um regime de poder/saber que molda a ordenação dos desejos, dos comportamentos e das instituições sociais, das relações sociais e, numa palavra, a constituição do self e da sociedade.

Butler, como outros teóricos queer, volta sua crítica e sua argumentação para a oposição binária heterossexual/homossexual. Esses teóricos e teóricas afirmam que a oposição preside não apenas os discursos homofóbicos, mas continua presente, também, nos discursos favoráveis à homossexualidade. Seja para defender a integração dos/as homossexuais ou para reivindicar uma espécie ou uma comunidade em separado; seja para considerar a sexualidade como originariamente 'natural' ou para considerá-la como socialmente construída, esses discursos não escapam da referência à heterossexualidade como norma.

Conforme Seidman, "permanece intocado o binarismo heterossexual/homossexual como a referência mestra para a construção do eu, do conhecimento sexual e das instituições sociais". Esse posicionamento parece insuficiente, uma vez que não abala, de fato, o regime vigente. Segundo os teóricos e teóricas queer é necessário empreender uma mudança epistemológica que efetivamente rompa com a lógica binária e com seus efeitos: a hierarquia, a classificação, a dominação e a exclusão.

Uma abordagem desconstrutivista permitiria compreender a heterossexualidade e a homossexualidade como interdependentes, como mutuamente necessárias e como integrantes de um mesmo quadro referencial. A afirmação da identidade implica sempre a demarcação e a negação do seu oposto, que é constituído como sua diferença. Esse "outro" permanece, contudo, indispensável. A identidade negada é constitutiva do sujeito, fornece-lhe o limite e a coerência e, ao mesmo tempo, assombra-o com a instabilidade. Numa ótica desconstrutivista, seria demonstrada a mútua implicação/constituição dos opostos e se passaria a questionar os processos pelos quais uma forma de sexualidade (a heterossexualidade) acabou por se tornar a norma, ou, mais do que isso, passou a ser concebida como "natural".

O discurso identitário arbitrário, contingente e ideologicamente motivado, com suas nítidas, ainda que inconscientes, pretensões hegemônicas – intencionalmente ou não produziu exclusões, deslegitimação, e um falso senso de universalidade. Realmente, um dos efeitos mais perversos das políticas de afirmação identitária é a naturalização de identidades de gênero como categorias descritivas auto-evidentes.

Ao alertar para o fato de que uma política de identidade pode se tornar cúmplice do sistema contra o qual ela pretende se insurgir, os teóricos e as teóricas queer sugerem uma teoria e uma política pós-identitárias. O alvo dessa política e dessa teoria não seriam propriamente as vidas ou os destinos de homens e mulheres homossexuais ou transgêneros, mas sim a crítica à oposição heterossexual/homossexual e cisgênero/transgênero, compreendida como categorias centrais que organizam as práticas sociais, o conhecimento e as relações entre os sujeitos. Trata-se, portanto, de uma mudança no foco e nas estratégias de análise; trata-se de uma outra perspectiva epistemológica que está voltada, como diz Seidman, para a cultura, para as "estruturas linguísticas ou discursivas" e para seus "contextos institucionais".

O diálogo entre a Teoria Queer e a Sociologia tem sido marcado pelo estranhamento, mas também pela afinidade na compreensão da sexualidade como construção social e histórica (Miskolci, 2009, p. 151). O estranhamento queer com relação à teoria social derivava do fato de que, ao menos até a década de 1990, as ciências sociais tratavam a ordem social como sinônimo de heterossexualidade e cisgeneridade. O pressuposto heterossexista do pensamento sociológico era patente até nas investigações sobre sexualidades não-hegemônicas. A despeito de suas boas intenções, os estudos sobre minorias terminavam por manter e naturalizar a norma heterossexual. Os primeiros teóricos queer rejeitaram a lógica minorizante dos estudos socioantropológicos em favor de uma teoria que questionasse os pressupostos normalizadores que marcavam a Sociologia canônica” (Miskolci, 2009, p. 152).

Referências Bibliográficas

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