domingo, 4 de dezembro de 2016

Se o normal é ser neurótico, fuja do normal

Já conheço os passos dessa estrada
Sei que não vai dar em nada
Seu segredo sei de cor...

(Retrato em Branco e Preto, de Chico e Tom)

Do surto psicótico todo mundo já ouviu falar e muitos até já viram uma pessoa surtando, no estilo clássico, de precisar ser contida e removida em camisa-de-força. O surto neurótico, entretanto, apesar de infinitamente mais comum, quase ninguém se dá conta.

Simplesmente porque vivemos em um mundo onde ser neurótico é tão “normal” que a pessoa neurótica nem é mais considerada doente. Freud afirmou que a matriz de todas as nossas neuroses são as imposições e exigências da civilização sobre os nossos impulsos naturais, com o objetivo de organizar e manter a vida em sociedade. E brincava dizendo que é uma sorte a gente ser só “neurótica”, já que podíamos ter tido o azar de ser psicótica, ou seja, completamente lelé-da-cuca (se bem que a maioria não está muito longe disso não).

Assim, como todo mundo é neurótico, e pouquíssima gente tenta se tratar, encarando anos e anos de análise, em vez de se refugiar nos “rivotril” e “lexotan” da vida, o surto neurótico acontece a toda hora, em todo e qualquer lugar, sem que ninguém se dê conta.
Angústia, ansiedade, culpa, depressão “leve” (ei? “Leve”?), desinteresse “leve” pela vida, inapetência sexual, narcisismo, concorrência e disputa com os outros, vergonha, inaceitação de si mesma, inveja, sentimento de abandono, raiva, tristeza, medo (leve...), estresse, etc. etc. etc. são consideradas hoje em dia praticamente como “manifestações normais” na vida das pessoas quando, na verdade, são gravíssimos sintomas de uma psique instável e em desequilíbrio. E todo mundo sabe que o preço de manter uma psique instável e em desequilíbrio é uma vida insatisfatória e infeliz.

Freud também afirmava, com veemência que, em se tratando das neuroses, não se pode falar de doença nem de cura, mas de elaboração. Para ele, a neuroses que uma pessoa tem hoje é apenas a “fumacinha” de uma fogueira que aconteceu ontem, muito particularmente na infância e na adolescência, fases em que a pessoa se torna “sujeito”.

Ou seja, são os traumas e situações não-resolvidas e mal-resolvidas do passado que fazem aparecer as neuroses do presente. A neurose é uma forma de aliviar a dor remanescente (e permanente) de uma situação que a pessoa não deu conta de lidar no passado. Dessa forma, ela é levada, compulsória e compulsivamente, a repetir indefinidamente a situação traumática que gerou a neurose, isto é, em "atualizar" o trauma.

Exatamente como no trecho da música Retrato em Branco e Preto, de Chico Buarque e Tom Jobim, citada em epígrafe, o neurótico volta permanentemente à cena causadora da neurose, quase sempre de maneira confusa e indireta, que nem ele mesmo é capaz de saber do que se trata. Uma pessoa invejosa, por exemplo, está apenas em busca de ter um diferencial que a torne “amável” para uma mãe ou pai que não lhe deu um olhar de acolhimento. Assim como alguém que tenta se impor a todo custo sobre os demais está em busca de ocupar um espaço que lhe garanta o reconhecimento e o apreço dos pais, que nunca o valorizaram devidamente. Ou que, muito ao contrário, valorizam a pessoa em excesso, além dos limites das suas habilidades e competências, exigindo dela desempenhos muito acima da sua capacidade.

É só na medida em que a pessoa reconhece e elabora os seus traumas do passado (atenção: trauma é algo totalmente individual; o que foi traumatizante para uns pode ser até estimulante para outros) que desaparecem as suas neuroses do presente, sendo (re)estabelecido a estabilidade e o equilíbrio da sua psique.
As neuroses são uma fonte inesgotável de estresse, porque nos fazem consumir um exagero de energia vital sem produzir nenhum resultado ou, ainda pior, produzindo resultados absolutamente indesejados, quase sempre caóticos ou catastróficos.

Se você é alguém que se “habituou” a ser neurótico, talvez seja a hora de repensar o seu conceito a respeito de saúde mental. E se a sociedade acha que é normal ser neurótico, fuja da normalidade. 

3 comentários:

*********** disse...

Muito bom.

Unknown disse...

As palavras mais certas sobre neurose que já li.

PC disse...

Trem complicado, gente...
Ando com saudades suas.
Avisa quando aparecer por BH.
Beijo

Paulinho