Nosso primeiro risco ao problematizar a questão de gênero na sociedade contemporânea é recorrer e nos submeter a modos de pensamento que são, eles próprios, produtos de milênios de dominação masculina. O caráter histórico, contínuo e sistemático dessa dominação produziu formas de pensar e de agir que ficaram profundamente registrados no consciente e no inconsciente individual e coletivo da civilização. De tal forma que os nossos mecanismos de análise, síntese e conclusão dos fatos correm o permanente risco de estar sutil ou abertamente contaminados por poderosos fragmentos dessa visão androcêntrica do mundo.
A cisgeneridade compulsória, em que as pessoas são obrigadas a se tornar homens ou mulheres na sociedade humana, com absoluta supremacia dos primeiros, em razão única e exclusiva do órgão genital presente entre as pernas de cada pessoa ao nascer, é apenas um desses “traços indeléveis” de milênios de dominação masculina.
Precisamos, assim, antes de mais nada, de executar uma “descontaminação” dos nossos instrumentos de pesquisa e discussão, realizando uma subversão simbólica das categorias de pensamento vigentes, de forma a instaurar as condições para a realização de uma autêntica crítica revolucionária de gênero. Uma revolução capaz de atingir não apenas as estruturas e processos institucionais que sustentam a ordem vigente mas, acima de tudo, de levar as pessoas a realizarem uma sublevação mental, uma profunda desconstrução de categorias de percepção, análise e conclusão que nos levam a colaborar ativamente, mesmo sem o saber, para a perpetuação da ordem social que desejamos ardentemente transformar.
Gênero é uma construção social intelectualmente naturalizada com o propósito de legitimar a relação de dominação do macho sobre a fêmea, através da sua inscrição em um referencial biológico que é, ele próprio, uma construção social biologizada.
O gênero promove a reconstrução social do organismo biológico do ser humano a partir da apropriação e reconstrução das diferenças anatômicas entre os sexos. Através dessa reconstituição simbólica do sexo biológico, as diferenças anatômicas naturais entre o macho e a fêmea são transformadas em expectativas de desempenho de machos e de fêmeas vivendo em sociedade, formando categorias de pensamento que servem de fundamento à própria organização jurídica, econômica, religiosa, etc., da sociedade.
Observa-se aqui uma inversão totalmente arbitrária e altamente dissimulada de causas e efeitos, em que o corpo construído socialmente passa a ter predomínio absoluto sobre o organismo biológico que lhe deu origem. Ou seja, os discursos e esquemas mentais que determinam, organizam e controlam a atividade dos indivíduos na vida em sociedade passam a ser considerados mais “naturais” e, portanto, mais verdadeiros e concretos, do que as próprias disposições orgânicas e psíquicas dos seres humanos, essas sim, de origem natural.
A divisão da sociedade em duas categorias de gênero – homem e mulher ou masculino e feminino atende primordialmente à ideologia da dominação patriarcal, em que o homem é detentor de poder absoluto por herança divina. Na prática, essa divisão homem-mulher, emprestada da divisão biológica dos sexos, corresponde à idealização burocrático/funcional do macho e da fêmea biológicos, considerados como agentes de uma sexualidade “de origem divina” cujo único propósito é a reprodução da espécie.
Essa estrutura idealmente perfeita, tendo em vista os objetivos de sobrevivência do patriarcado choca, na prática, com a ambiguidade e a pluralidade das identidades e expressões de gênero.
A bela “ordem” binária de gênero homem-mulher, instituído pelo patriarcado, com o homem tendo pleno e total domínio sobre a mulher contrasta, na vida diária, com a natureza paradoxal, subjetiva e difusa do próprio conceito de gênero, que escapa facilmente de qualquer normalização que lhe for imposta e que só é mantido através de uma permanente vigilância e controle social. E todas as formas de gênero que escapam ao binarismo arbitrário da ideologia patriarcal vão se constituir como transgressão e perversão aos olhos dos burocratas, tecnocratas e religiosos a serviço do poder patriarcal.
Se a oposição hierárquica, binária, entre masculino e feminino parece ancorada na ordem “natural” das coisas é porque encontra eco no comportamento diário das pessoas. Ou seja, as pessoas asseguram, através das suas próprias práticas e rotinas de vida, além de uma contínua vigilância de umas sobre as outras, que essas oposições existam e sejam mantidas. Dessa forma, o dispositivo binário de gênero está tão profundamente arraigado na sociedade que parece dispensar qualquer tipo de justificação: - ele se impõe como auto-evidente, natural e universal.
Concluindo, o dispositivo binário de gênero apropria-se de causas naturais – a diferenciação anatômica entre os sexos – a fim de legitimar e garantir a ideologia de dominação masculina. Toda a encenação “binária” de gênero tem por finalidade última diferenciar o homem da mulher, em caráter total e absoluto, como se fosse possível livrar o masculinidade da feminilidade, em função da qual o homem, tragicamente, se define. A outra função do binarismo de gênero é eliminar sumariamente qualquer variação identitária de gênero que escape ao sistema binário homem-mulher.
Para a sociedade, só existe e, portanto, só pode gozar de direitos, o cis-gênero, isto é, o que está perfeitamente conforme ao dispositivo binário de gênero, apresentando-se socialmente ou como homem ou como mulher e seguindo estritamente as normas de conduta socialmente fixadas para cada uma dessas categorias.
O trans-gênero, isto é, o que apresenta qualquer tipo de não-conformidade com o dispositivo binário de gênero, simplesmente não existe e, portanto, não pode e não deve gozar de direitos na sociedade patriarcal. Pelo contrário, deve ser tratado como pessoa transgressora de normas de conduta social ou, na melhor das hipóteses, como portadora de transtorno mental. Ou seja, como delinquente ou como doente.
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