Íntegra da entrevista feita pelo jornalista Allan Johann, e publicada na revista LADO A, edição de fev/mar de 2017. A revista LADO A é produzida e editada em Curitiba, e distribuída gratuitamente nas baladas (www.revistaladoa.com.br).
Aos 65 anos. a mineira Letícia Lanz é psicanalista, mestra em Sociologia pela UFPR e referência na discussão sobre Estudos Transgêneros no Brasil. Mulher transgênera, lésbica, casada com uma mulher há 40 anos, é pai de três filhos, avô de quatro netos e mostra que, além de estereótipos, preconceitos e conceitos, é necessário respeitar o livre arbítrio humano de cada pessoa ser o que é. Letícia é autora do livro "O Corpo da Roupa", o primeiro manual sobre Estudos Transgêneros escrito original mente na língua portuguesa.
Aos 65 anos. a mineira Letícia Lanz é psicanalista, mestra em Sociologia pela UFPR e referência na discussão sobre Estudos Transgêneros no Brasil. Mulher transgênera, lésbica, casada com uma mulher há 40 anos, é pai de três filhos, avô de quatro netos e mostra que, além de estereótipos, preconceitos e conceitos, é necessário respeitar o livre arbítrio humano de cada pessoa ser o que é. Letícia é autora do livro "O Corpo da Roupa", o primeiro manual sobre Estudos Transgêneros escrito original mente na língua portuguesa.
Letícia, você assumiu sua identidade de gênero quando já era adulta. Como você descreve esse processo de entendimento pessoal?
Publicamente, você diz, né? Porque esse entendimento pessoal a que você se refere é algo que ocorreu muito cedo em minha vida, por volta dos três ou quatro anos, quando descobri que eu me identificava com um mundo – o feminino – que era totalmente vedado para mim, em função de eu ter nascido macho, isto é, com um pênis. Eu me lembro bem das pessoas adultas me “corrigindo”, isto é, “educando”, para eu aprender a ser um “menino homem”, ou seja, para não brincar com boneca, para não brincar de casinha, para não usar as roupas e as maquiagens da minha mãe, coisas que eu amava fazer irresistivelmente. Em lugar de coisas de menina, eu devia jogar futebol, brincar de lutinha e “zoar” os colegas, coisas que eu detestava e continuo detestando fazer depois de tanto tempo. Essa história de inadequação e repulsa pessoal pela categoria de gênero em que fui enquadrada ao nascer vem, portanto, lá da minha infância, e tive que carregá-la comigo por cinco décadas, até me sentir suficientemente empoderada para lidar com as represálias da sociedade, que eu sabia muito bem fatalmente viriam, quando e se eu assumisse a minha condição de pessoa transgênera.
Você tem netos, e não se importa de que eles te tratem no masculino, como vovô, por quê?
Uma das besteiras típicas do “fundamentalismo” de gênero é que papeis masculinos só podem ser exercidos por homens, nunca por mulheres. Nos últimos 60 anos, as mulheres mostraram, com muita classe e determinação, que não existem papeis masculinos e papeis femininos como resultado de algum determinismo da natureza, que todos os papeis existentes na sociedade podem ser igualmente exercidos por mulheres e homens, com uma única exceção, que é gestar e parir, até agora função exclusiva da mulher por determinismo biológico. O censo do IBGE mostrou que cerca de 47% dos lares brasileiros estão sendo tocados exclusivamente por mulheres que, no caso, são obrigadas a ser mães e pais para os seus filhos, já que também foi mostrado que a maioria dos homens simplesmente abandonam o lar, escafedendo-se completamente, deixando a responsabilidade do cuidado familiar exclusivamente para as mulheres. Esse acúmulo de papeis femininos e masculinos sobre as costas das mulheres não parece indignar nem um pouco os representantes do patriarcado machista, que simplesmente enlouquecem com a minha persistência em manter meus papeis de avô, pai e marido, sem entrar nesse arremedo bobo de querer ser avó, “pãe” ou marida (afff...).
Faz parte da vida daqueles que têm sexualidades e gêneros transgressores ter que revelar quem são e lidar com a não aceitação? Como você enfrenta a não aceitação?
Faz, pelo menos enquanto gênero for o único critério de classificação e hierarquização dos seres humanos em dois grupos opostos – homens e mulheres – em função única e exclusivamente deles serem machos ou fêmeas, isto é, de trazerem um pinto ou uma vagina entre as pernas ao nascer. O dispositivo binário de gênero é o principal sustentáculo de todas as desigualdades existentes na sociedade patriarcal-machista em que vivemos. Por isso mesmo, os transgressores das normas binárias de gênero sempre foram duramente discriminados, punidos e escorraçados do convívio social “normal”. Dentro do modelo binário de gênero que possuímos, a não aceitação é estrutural: não tem como evitá-la se não combatendo o próprio conceito de gênero. O que fazer diante de um binarismo de gênero que os fundamentalistas chegam a atribuir, em desespero de causa, à própria “vontade do Criador” e, portanto, “imexível”? Qualquer infração das normas de enquadramento continuará sendo considerada transgressão e os indivíduos transgêneros, duramente reprimidos, combatidos e punidos pela sociedade, às vezes de forma altamente agressiva e violenta, como acontece diariamente no Brasil com as nossas travestis de rua. Às vezes de forma altamente elegante e sutil, como o “esquecimento” profissional a que fui submetida após a minha transição e que me deixou sem um único cliente na minha antiga profissão de Consultora Empresarial. Por sorte, e principalmente por ser um tipo feminino altamente passável, eu nunca sofri nenhuma forma explícita de não aceitação da minha condição transgênera, a não ser, paradoxalmente, dentro do próprio gueto transgênero. Sofri e ainda sofro horrores na boca de certas lideranças e formadoras de opinião que simplesmente não aceitam eu ser quem e como eu sou.
Teoricamente, você debate muitas questões de gênero sob a perspectiva da Teoria Queer. Qual o seu posicionamento sobre o argumento de que essa teoria apaga histórias ao abrigar lutas sob uma mesma perspectiva?
Em primeiro lugar, o medo real dessas lideranças e pessoas formadoras de opinião que combatem a perspectiva queer, pelo menos aqui no Brasil, é a perda de vantagens e privilégios adquiridos para elas próprias, através de lutas identitárias cujos resultados são absolutamente pífios e inócuos, quando avaliados à luz dos reais interesses e necessidades da população transgênera do país.
Ou seja, essas pessoas estão usando as lutas identitárias em benefício próprio, e se lixando para a população teoricamente representada por suas entidades. Não é só o queer que é recebido como ameaça, não! Os estímulos para a melhoria do grau de escolarização de travestis de rua e/ou a sua recolocação no mercado de trabalho formal (tendo em vista aquelas que queiram deixar o mercado do sexo), por exemplo, são objetos de críticas veladas e muito corpo mole por parte das instituições ditas representativas da categoria. Por outro lado, vê-se uma absurda insistência numa medida altamente inócua como essa do “nome social”, que formalmente não serve para nada, em vez de haver uma necessária, urgente e inadiável mobilização da população transgênera em torno da aprovação do projeto de lei João Nery. Descontado tudo que já foi dito antes, um outro foco de resistência ao enfoque queer é não saber nada a respeito do queer. Nesse caso, combater, para essas pessoas, parece ser uma ótima saída, para não terem que reconhecer o seu despreparo e dissintonia com o mundo em que vivemos.
Você produziu um dicionário transgênero que está disponível no seu site. Você poderia explicar para os nossos leitores a diferença entre transexual e transgênero?
Vamos começar por transgênero, um dos termos mais abusivamente usados nesse país, em geral com todos os sentidos possíveis, menos o dele mesmo. Pra começar, transgênero não é uma “identidade de gênero”, como homem, mulher, travesti, transexual, transhomem, dragqueen, crossdresser, não-binário, etc. etc. etc. Transgênero é a condição de não adequação, de subversão, numa palavra, de transgressão das normas de conduta do dispositivo binário de gênero. A transgressão pode ser superficial e temporária, como alegam os chamados crossdressers e travestis ocasionais com suas práticas de “montagem eventual”, como pode ser permanente, duradoura e profunda, que é o caso das pessoas transexuais e travestis que vivem montadas em caráter permanente. O “trans” de transgênero vem exatamente da palavra transgressão.
Transgênero é assim uma espécie de guarda-chuva que abriga todo e qualquer tipo de comportamento socialmente considerado como transgressão das normas de gênero.
O termo transgênero opõe-se ao termo cisgênero, que significa exatamente o contrário, ou seja, a condição de adequação e conformidade às normas de conduta do dispositivo binário de gênero em vigor na sociedade. As únicas identidades cisgêneras que existem, por definição, são homem e mulher. Para ser cisgênera, a pessoa tem, necessariamente, que viver em conformidade com as normas de gênero da categoria em que foi classificada ao nascer.
Resumindo: transexual é uma identidade de gênero; transgênero é uma condição sociopolítica de transgressão do dispositivo binário de gênero. Se uma pessoa é transexual, ela necessariamente é transgênera, mas uma pessoa transgênera não é necessariamente transexual, pois ela pode ser também travesti, crossdresser, dragqueen, não-binária, andrógina, transformista, etc. etc. etc.
Não há coisa mais esdrúxula do que ler uma sequência do tipo “transexual, travesti e transgênero” (note que a ordem de citação, inclusive, já quer impor um grau de importância, uma hierarquia implícita), pois é como ler tomate, pepino e legumes. Afinal de contas, qualquer pessoa já sabe (ou deveria saber) que tomate e pepino são legumes.
Como você enxerga as drag queens dentro da discussão de gênero?
Juro que me deu vontade de responder a sua questão assim: com os olhos, tamanha a canseira que me dá tratar desse assunto aqui no Brasil. Como eu afirmei no item anterior, importantes lideranças trans (elas é que se autoconsideram importantes...) afirmam, com a autoridade de donas da verdade, que dragqueen não é identidade de gênero, mas profissão. Aí, quando dragqueens famosas, como a Leo Áquila, aqui do Brasil, ou a Carmem Carrera, que brilhou no reality show Rupaul´s Drag Race, assumem viver integralmente como mulher, essas mesmas “lideranças” desconversam – e certamente não é por falta de assunto. Assim como se tornou absolutamente inconsistente e inadequado o critério de diferenciar travestis de transexuais a partir do desejo dessas últimas em realizar cirurgia de readequação genital, desejo esse que não estaria presente (aff...) nas primeiras, da mesma maneira, tornou-se completamente nonsense afirmar que dragqueen é homossexual que se produz como mulher em caráter exagerado (over) a fim de “trabalhar” como hostess em casas noturnas ou animar festas de fim de ano.
Você é um pesquisadora na área de sexualidade e gênero, não é? Qual foi seu último trabalho?
Foi a minha dissertação no mestrado de sociologia da UFPR, apresentada no ano de 2014, e que serviu de base para a publicação do meu livro “O Corpo da Roupa – Uma Introdução aos Estudos Transgêneros”.
O seu livro “O Corpo da Roupa” foi bastante comentado. Pode nos contar um pouco sobre ele?
O Corpo da Roupa é o primeiro manual, compêndio ou livro introdutório sobre Estudos Transgêneros escrito originalmente em língua portuguesa. Com uma linguagem bastante simples e didática, busquei alcançar o máximo de pessoas, com o objetivo de fornecer uma visão geral do que são identidades gênero-divergentes ou transgêneras (travestis, crossdressers, transexuais, andróginos, dragqueens, transformistas, etc.). Trata-se de um trabalho básico, não apenas para quem está se descobrindo agora como pessoa transgênera, mas também para educadores, pesquisadores, jornalistas, advogados, médicos, psicólogos, assistentes sociais e estudantes dessas áreas, além de pessoas interessadas em conhecer melhor o mundo transgênero.
De forma desconstrutivista e desafiadora, são apresentados temas fundamentais estudados por essa disciplina, como corpo, roupa, gênero, transgressão de gênero, identidades gênero-divergentes, família, escola, armário, transição, passabilidade e tantos outros. Com a sua publicação, busquei preencher a lacuna até agora existente em nossa língua, de um livro onde se pudesse adquirir uma visão geral do complexo território transgênero, a partir dos seus principais fundamentos teóricos, do seu campo de aplicação prática e dos grandes conflitos, debates e problematizações que essa área de estudos envolve no mundo contemporâneo. Além de incluir uma vasta bibliografia contendo livros, artigos e sites relacionados, o volume traz uma edição revista e atualizada do Dicionário Transgênero, publicado por mim, desde 2006, no Arquivo Transgênero, www.leticialanz,blogspot.com.br .
Os últimos exemplares da primeira edição ainda estão sendo comercializados no Mercado Livre (http://produto.mercadolivre.com.br/MLB-827981469-livro-o-corpo-da-roupa-de-leticia-lanz-_JM).
Estamos passando por uma crise política que busca abolir a discussão de gênero dentro das escolas. O que acha sobre isso?
Desde que surgiu, em meados da década de 1960, introduzido por teóricas feministas, o conceito de gênero tem-se mostrado extremamente robusto na descrição do fenômeno da divisão binária da sociedade entre homens e mulheres. Podemos dizer com total convicção que os debates sobre igualdade de direitos entre todos os seres humanos jamais foram os mesmos depois da introdução do conceito de gênero. Ele simplesmente desbancou as pretensões hegemônicas do patriarcado e é por essa razão mesma que gênero é tão combatido pelas forças mais retrógradas e obscurantistas da sociedade, como setores ultra-conservadores da igreja católica, evangélicos fundamentalistas e políticos de extrema direita. São essas forças que hoje tentam proibir o aprendizado e a discussão de gênero dentro das escolas, como o prefeito de um município de Rondônia, que recentemente determinou que fossem arrancadas todas as páginas dos livros didáticos em uso nas escolas públicas do seu município que fizessem referência a temas como gênero e orientação sexual.
Em um mundo ligado por redes instantâneas de comunicação entre todas as pessoas, é muito pouco provável que esses mentecaptos consigam tapar o sol com a peneira. Seus desvarios naturalmente sempre dificultaram e conseguiram adiar o progresso dos direitos humanos na sociedade, mas não impedi-los. A discussão sobre sexo e gênero nunca esteve tão presente no dia-a-dia das pessoas e não serão medidas espúrias como essa de “impedir” o debate sobre gênero dentro das escolas que irão eliminar essa discussão. Pelo contrário, eu penso que tanta celeuma em torno de nada está apenas estimulando ainda mais a disseminação do conceito de gênero, dentro e fora das escolas.
Em um mundo ligado por redes instantâneas de comunicação entre todas as pessoas, é muito pouco provável que esses mentecaptos consigam tapar o sol com a peneira. Seus desvarios naturalmente sempre dificultaram e conseguiram adiar o progresso dos direitos humanos na sociedade, mas não impedi-los. A discussão sobre sexo e gênero nunca esteve tão presente no dia-a-dia das pessoas e não serão medidas espúrias como essa de “impedir” o debate sobre gênero dentro das escolas que irão eliminar essa discussão. Pelo contrário, eu penso que tanta celeuma em torno de nada está apenas estimulando ainda mais a disseminação do conceito de gênero, dentro e fora das escolas.
Quais são os seus projetos para o futuro?
Viver cada dia que eu ainda tiver pela frente, com o máximo de intensidade e o mínimo de estresse, defendendo as coisas que eu acredito e acreditando que é possível, sim, um futuro mais digno, mais justo e mais amoroso para toda a humanidade.
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