domingo, 12 de março de 2017

Eu, Letícia Lanz, vítima de bullying e transfobia dentro do próprio gueto trans

Na semana que passou, fui vítima novamente de bullying e de transfobia numa rede social. Por covardia, após me "bolinar" à vontade, a pessoa bolinadora deletou o perfil dela, um perfil que, por sinal, era totalmente "fake".

Nada novo em minha vida, uma vez que, diariamente, sou vítima de bullying e de transfobia. Na sociedade em geral? De maneira alguma! Sempre fui muito bem recebida e muito bem tratada em todos os lugares onde eu vou. Sabe aonde? Dentro do próprio gueto transgênero.

O "bullying" por eu ser uma pessoa "trans lésbica", que elas pejorativamente chamam de “homem vestido de mulher”, exatamente como aquele bando de meninos transfóbicos chamam de mulherzinha e "maricas" o colega que consideram afeminado. O "bullying" por eu ter família e me manter casada, há 40 anos, com a mulher que eu amo. Na cabeça delas, para eu ser trans, eu teria que gostar de homem como, aliás, pensa qualquer bando de meninos transfóbicos ao assediar o colega que consideram afeminado. O "bulliyng" por eu ter filhos e netos e continuar permitindo que eles me chamem de pai e de avô, que é o que eu sou deles, desde sempre, razão pela qual as meninazinhas deslumbradas transfóbicas do gueto me chamam ostensivamente de "velho sem vergonha, que está bagunçando a cabeça dos netos".

O objetivo do bullying, como sabemos, é manter e restituir o que a sociedade entende e aceita como “normalidade” do comportamento humano e da própria existência de cada pessoa. Portanto, tudo que é “diferente” do que é aceito como “normal” deve ser combatido e extirpado. O bullying é parte integrante de um imenso sistema de controle e dissuasão que visa manter a “normalidade” estabelecida pela sociedade de uma dada época e lugar.

As vítimas do bullying são, portanto, todas as pessoas cujo comportamento ou modo de ser escapa ao que se considera normal. Os bolinados são sempre pessoas não-conformes às normas vigentes, consideradas transgressoras dessas normas, que devem ser desestimuladas em suas práticas e “reconduzidas” à normalidade, ou seja, ao “caminho do bem”. Por bem ou por mal.

Quando sofro o bullying dessas meninas deslumbradas transfóbicas de dentro do próprio gueto, imagino o quanto elas mesmas são vítimas de bullying no mundo em que vivem, para vir assim, “descontar” em mim. Como dizia o nosso grande educador Paulo Freire, “o sonho de todo oprimido é tornar-se opressor”...

Vivem morrendo de medo de serem reconhecidas como homens nos lugares onde vão. Muitas, mesmo operadas, mantêm aparência física de homem e isso para elas é arrasador, pois é motivo de bullying contínuo por parte do mundo cisgênero. Então a maneira que veem de lidar com o bullying de que elas próprias são vítimas é exigir, dentro do gueto, um enquadramento de gênero tão rígido e tão absoluto quanto o que a sociedade lhes cobra.

Assim, por conta própria, passam a fixar regras de quem é e de quem não é uma mulher transgênera, de quem pode e de quem não pode chamar-se assim, exatamente como a sociedade faz com todo mundo, nos enquadrando, ao nascer, como homem ou mulher em função exclusivamente de termos um pinto ou uma vagina.

Ao exigirem, dentro do gueto, um enquadramento de gênero absolutamente igual ao vigente na sociedade em geral, tornam-se, automaticamente, pessoas fundamentalistas de gênero e transfóbicas, além de se converterem em fortíssimas aliadas da própria sociedade que as exclui, discrimina e violenta no dia a dia. Tornam-se, elas próprias, o que há de mais reacionário e retrógrado em termos de gênero. É por isso, inclusive, que precisam de se declarar o tempo todo como sendo “100% mulheres”, mesmo sabendo que não são, por um medo abissal de não serem reconhecidas como tal.

Há muitas vítimas do seu bullying cruel e violento, exercido dentro do gueto contra pessoas que não se enquadram nos seus “padrões de mulheridade”, que são exatamente iguais ou ainda mais rígidos do que os padrões existentes na sociedade em geral. Por isso, em resposta ao seu bullying, eu as chamo de “cisgêneras enrustidas”, cujo propósito último não é o de expressar a sua identidade transgressiva e não-conforme ao dispositivo binário de gênero, mas de se constituírem como parte integrante da própria sociedade patriarcal binária que definitivamente não as aceita e as exclui.

Uma coisa é certa: nunca me intimidei e nunca me intimidarei com o discurso nefasto de pessoas nitidamente transfóbicas. Sei que o seu bullying tem o propósito de me converterem às suas crenças ridículas a respeito de sexo e gênero. São pessoas que tentam se passar como revolucionárias sendo apenas e tão somente reacionárias e conservadoras a serviço do perfeito enquadramento de gênero dentro do binarismo existente na sociedade.


Um comentário:

Carioca disse...

Sua história é linda. Coragem e AMOR!!! Vc quase morreu e precisou disso para renascer e ser o que é: Letícia, pai e avô dedicado. Marido apaixonado. Feliz!!! Parabéns!