Assim como a orientação sexual não está vinculada à identidade de gênero das pessoas, os papéis de gênero também não estão. Aliás, a revolução feminina se deu exatamente pela ampla ocupação e desempenho de papéis sociais que estiveram estritamente vinculados ao homem até o início do século XX, como o papel de juiz, médico, delegado, pedreiro, provedor, etc., etc., etc. Foi exatamente através da ocupação desses papéis pela mulher que a ordem patriarcal se desestabilizou e tende a se extinguir por completo em futuro não muito distante.
Apesar dessa conclusão tão óbvia de que, através dos papéis sociais, é possível promover-se uma desestabilização de todo o cis-tema, o gueto transgênero, com suas dúzias e dúzias de identidades socialmente proscritas, excluídas e abjetadas, onde a revolução dos costumes deveria ser um mote existencial por excelência, apresenta-se hoje e sempre como um dos redutos mais conservadores e reacionários na defesa do binarismo de gênero persistentemente atrelado ao exercício de papéis sociais “exclusivos” de homem ou de mulher.
Assim é que homens trans que mantêm o útero após a transição, não se reconhecem no papel de mãe ao engravidar e parir, assumindo a postura machista de pais, sabendo naturalmente que machos não são capazes de gestar e parir e que esse diferencial é justamente o que revoluciona inteiramente a visão de homem na sociedade. Assumirem-se como pais é um gesto miseravelmente conservador, que só serve para reificar e ratificar o cis-tema.
Por que se recusam a ser mães? A primeira resposta é pela baixíssima compreensão do fenômeno e das lutas transgêneras como questão política, portanto coletiva, que afeta toda a sociedade. Numa guerra, a ocupação de territórios é absolutamente fundamental (vide o exemplo da revolução feminina na sociedade, como acima exposto). A segunda resposta, obviamente relacionada à primeira, é que a maioria das pessoas que transicionam para a categoria de gênero oposta àquela em que foram enquadradas ao nascer não têm nenhum desejo de mudança genuína da sociedade enquanto sociedade, mas apenas e tão somente o desejo de serem 100% homens ou 100% mulheres. Pouca gente está realmente a fim de detonar pra valer com a ordem binária de gêneros, mas apenas de se realocar dentro dela de acordo com o seu desejo. Por causa desse "egoísmo de gênero", torna-se fundamental para essas pessoas defenderem incondicionalmente todas as estruturas e instituições que organizam, promovem e dão sustentação ao binarismo de gênero na sociedade. O que não deixa de ser esquisito pois, de um lado, são vistas como perigosas revolucionárias ameaçando a ordem vigente quando, na realidade, são suas ardorosas defensoras.
O meu propósito, todo mundo sabe, sempre foi a ampla e total revolução do gênero. Nunca persegui uma simples transição de gênero, como infelizmente ainda deseja uma grande maioria de pessoas trans que, assim, contribuem apenas para manter “tudo como está e como sempre foi”. Por essa razão, eu sempre recusei a revisão dos meus papeis de gênero ao transicionar, continuando a me apresentar como pai, avô e marido, em vez de forçar a barra de todo mundo para ser vista como mãe, avó e “mulher” da minha mulher. O que ninguém percebia é que, por trás da minha aparente acomodação, estava na verdade a essência da minha revolução.
A minha luta sempre foi para poder me expressar socialmente como mulher, assumindo integralmente a identidade de gênero com a qual eu sempre me identifiquei, mas isso não significa que eu tenha que abrir mão do direito ao exercício dos meus papéis de pai, avô e marido, com os quais eu sempre me identifiquei e sempre me saí muito bem. Ou seja, a minha questão é com identidade de gênero, não com meus papéis de gênero.
Essa posição, evidentemente, nunca agradou um meio basicamente tão reacionário como o gueto transgênero, em que o dogma da transição determina, inapelavelmente, a mudança integral dos papéis sociais exercidos pela pessoa, em função de ser homem ou ser mulher, com coisa que esses papéis ainda existem de forma tão rígida na sociedade. O dogma da transição inclui também o respeito à heterossexualidade compulsória, onde mulher trans TEM QUE gostar de homem e homem trans TEM QUE gostar de mulher. Tal como a sociedade cisgênera, o gueto despreza e exclui solenemente mulheres trans lésbicas como eu, e homens trans gays.
Um comentário:
Brilhante! A revolução de gênero é algo a se perseguir, e tomar cuidado p não ser "REPASTEURIZADO" é o mais importante
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