Embora eu reconheça que a minha herança genética determinou a cor dos meus olhos e o tamanho das minhas mãos, seria tolice tentar responsabilizá-la por tudo que ocorre em minha vida, particularmente por minhas escolhas de caráter nitidamente individual, como é o caso do meu estilo de vida. Eu não dependo de nenhum time de genes apostando corrida no meu sangue para fazer ou deixar de fazer escolhas que são essencialmente políticas. Tampouco careço do mau-humor de algum “deus ex machina” e seus profetas esquizofrênicos vociferando "regras de bem-viver", ao fazer escolhas existenciais quanto à vida que eu quero levar ou com que pessoas eu quero conviver. Os genes que me desculpem, mas no campo político e no campo existencial eu tenho escolha, eu faço as minhas escolhas, eu sou capaz de tomar minhas decisões por conta própria.
Assim como faço as minhas escolhas sem o auxílio de "genes deterministas" ou de "profetas iluminados", assumo inteiramente todas as consequências dos meus atos. Não dependo de nenhum pastor, bispo, sacerdote ou o equivalente para me ditar o que eu preciso fazer a fim de “entrar no paraíso” ou ficar do lado de fora, por toda a eternidade. Não abro mão do meu livre-arbítrio, recebido por delegação direta do Criador, que me permite trilhar meus próprios caminhos, com minhas próprias pernas, a partir das minhas próprias decisões. Mesmo que o castigo fosse "arder no fogo eterno", em hipótese alguma eu renunciaria à minha condição humana de livre-escolha e à minha "cidadania terrena" que me obriga ter "vontade política".
Não vou abdicar meu micropoder de cidadão comum em favor de nenhum “código de costumes”, escrito há milhares anos - e jamais revisto ou atualizado nesse tempo todo. Infelizmente, esse código ainda é seguido por multidões de pessoas fracas e fragilizadas por um sistema social que pune e exclui, sem clemência, os seus "dissidentes". Gente que vive aterrorizada com a vida que leva, que acaba encontrando um refúgio, embora sinistro, no "canto de sereia" de mistificadores da fé - e da razão. Gente que renunciou ao seu livre-arbítrio para seguir a carneirada, atrás de algum pastor.
Sem a prática do livre-arbítrio, liberdade não passa de um mito sem fundamento, conto da carochinha, conversa pra boi dormir. Por isso, não reconheço legitimidade em nenhuma ciência ou religião que se valha da razão e da fé, respectivamente, para confiscar o livre-arbítrio das pessoas incapazes de decidir seu destino por si próprias e que, portanto, precisam de regras “absolutas e infalíveis” para dirigir suas escolhas e suas condutas neste mundo.
Ciência e religião não preexistem à sociedade. Chegam depois que a sociedade já está formada e vêm, cada uma delas, com o seu próprio arsenal de maldades, destinado a explicar e dar suporte às crenças, valores e condições básicas sobre as quais a sociedade é constituída. Por regra (lembrando que toda regra tem exceção...), nenhuma religião ou ciência vem para questionar, contestar, combater ou refutar as premissas básicas sobre as quais repousa todo o imenso arcabouço sociocultural da humanidade. Longe de serem instrumentos de questionamento e subversão da ordem, religião e ciência, em seus segmentos mais robustos e representativos, são meros sustentáculos do “establishment”, "títeres" nas mãos do poder vigente.
É a “ordem instituída” quem dita o que é uma conduta adequada, respectivamente para um “homem” e para uma “mulher” depois, é claro, de especificar, pormenorizadamente, o que é um homem e uma mulher, o que é sexo, o que é gênero, o que é desejo, etc, etc, etc. Depois de criar as regras, sempre de maneira arrogante e unilateral, “naturaliza” todas as arbitrariedades cometidas em nome do "bem-estar" da sociedade - atribuindo à própria natureza – ou ao Criador em pessoa, ou a ambos - a origem dos seus códigos de conduta.
É desses “códigos de conduta”, criados e mantidos com mão de ferro pela sociedade - e não da natureza, como ainda supõe a esmagadora maioria das pessoas - que vêm as “determinações” quanto ao que cada ser humano deve ou não fazer da sua vida. O geneticista e o pastor, nos seus respectivos “lugares de fala”, na maioria das vezes são apenas “laranjas” a serviço da ordem sócio/político/econômica. Seus respectivos discursos científico e religioso não passam de leituras requentadas das disposições em vigor em determinada sociedade e em determinada época, habilidosamente travestidos e naturalizados como “disposições da genética” ou como “disposições de Deus”. Discursos que levam os indivíduos a cumprirem cegamente, de um jeito ou de outro, as regras de conduta a que pensam estar submetidos por força da “natureza”, quando, na verdade, são apenas escravos das disposições criadas e mantidas pela própria sociedade.
Categorias grosseiras e ultrassimplificadas como “heteronormatividade”, “homossexualidade”, "transexualidade" ou “transgeneridade”, só podem ser objeto de interesse numa sociedade onde as pessoas continuam sendo bizarramente classificadas ao nascer em função da sua genitália exposta. Que interesse ou valor teriam tais categorias de classificação/análise numa sociedade onde as pessoas fossem livres para ser o que elas desejassem ser, sem nenhuma "espada de Dâmocles" pairando permanentemente sobre suas cabeças, ao sinal do menor "desvio de conduta"? Sem a linguagem, os discursos, as normas, as interdições, os prêmios, os castigos, os “poderes” e os “saberes” (na terminologia de Foucault); sem esse imenso “aparato institucional heteronormativo-cisgênero” sobre o qual repousam as fundações e as ordenações da nossa sociedade, tais categorias seriam menos do que piadas de muito mau-gosto.
Quem se dedicaria à pesquisa de "genes homossexuais", por exemplo, numa sociedade que não classificasse os indivíduos em função da sua orientação sexual, livre de mecanismos de coerção e repressão sexual? Estudos dessa natureza seriam um total contrassenso, porque não haveria interesse algum na “descoberta” de tais genes. Mesmo porque, se "descobertos", não teriam nenhuma função social, nenhum destaque ou utilidade, nem teórica nem prática. A corrida da engenharia genética rumo à descoberta de genes homossexuais só faz sentido numa sociedade em que a expressão da sexualidade continua altamente reprimida, onde a orientação sexual de cada indivíduo ainda é objeto de controle social cerrado, onde é pecado qualquer forma de amor fora do modelo heteronormativo, onde as “instruções normativas” de origem “divina” substituem a decisão político-existencial de cada pessoa sobre o que ela quer, pode e deve fazer da sua própria vida.
Da mesma forma que o elenco de genes, programados para produzir “desvios” nos padrões de conduta da sociedade, não funcionariam numa sociedade sem esses padrões de conduta que aí estão, os castigos previstos por condutas sexuais divergentes, ditados pessoalmente pelo próprio Criador a algum profeta, esquizofrênico, há 5.000 anos ou mais, não serviriam nem como roteiro para algum filme “trash-nonsense” de 5ª categoria.
Em resumo, numa sociedade livre das amarras patriarcais-machistas-heteronormativas, estudos de “genes homossexuais” seriam tão improváveis – além de inúteis – quanto cursos de manutenção de foguetes espaciais para a nossa pobre população rural-campesina... Da mesma forma, nunca haveria a necessidade de convocar nenhum “deus ex machina”, mal humorado, pudorento, arrogante e vingativo, para “vigiar” e “punir”, com castigos eternos, os infratores e infratoras das regras de conduta sexual que a sociedade criou - e mantém - “em seu nome”...
A encenação de pastor e geneticista só é possível (e dá ibope...) numa sociedade onde qualquer expressão sexual e/ou de gênero fora do padrão heteronormativo-cisgênero é considerada “desvio de conduta”, “atentado aos costumes” ou “pecado mortal” e, tal como nos tempos bíblicos de ira e violência divina, continua sendo objeto de estigma, repúdio e escárnio público, em pleno século XXI.
A briga ciência-religião, em torno de uma questão como a prática homossexual, só continua em alta porque tem público garantido: - uma imensa galera que se sente “culpada” pelas suas práticas sexuais “transgressoras” (afff...) da "bela ordem" sociopolítica em que vivemos. Gente que necessita de uma ciência para recuperar sua “paz de espírito”, assegurando-lhes sua “total isenção pessoal”, sua impotência e total impossibilidade de escolha (afff...) quanto à sua escolha por conduta sexual ou expressão de gênero sócio-divergente. Gente capaz de trocar o seu livre arbítrio e a sua vontade política por um aparato genético determinista que faz com que sejam o que são. Gente que delega o seu livre-arbítrio aos tais "genes homossexuais" ou que se rende à fala de pastores destrambelhados fazendo-se passar por mensageiros da “vontade divina”(aff...)
O medo de assumir o peso das próprias escolhas faz com que tanta gente se entregue, muitas até conscientemente, a esse grau avançado de alienação e desprezo por suas próprias escolhas existenciais. Por mais tentador que seja atrelar nossas vidas a "destinos programados" por deuses e genes, não há nada que nos isente da responsabilidade pessoal por nossas próprias escolhas. Nós
somos o que escolhemos ser, mesmo quando "escolhemos" ser "polticamente determinados" por meia dúzia de "genes transgressores"... Mesmo quando sabemos que serão os genes que vão dos libertar da camisa-de-força moral desses vetustos e abomináveis “códigos divinos”, que nos mantém reféns de uma heterossexualidade cisgênera, hegemônica e compulsória, absolutamente deslocada e sem sentido nos dias atuais.
O livre-arbítrio - e seu irmão gêmeo chamado "vontade política" - são a essência da mudança e do progresso social. Livre arbítrio é a capacidade de condicionar nosso destino às nossas próprias escolhas individuais e coletivas, em vez de submetê-lo, passivamente, aos tais “genes homossexuais”, às tais “disposições da natureza” ou às tais “instruções divinas”. Livre arbítrio é a capacidade de sermos arquitetos da sociedade em que desejamos viver, em vez de nos mantermos escravos de uma ordem social perniciosamente injusta, neurótica e caduca.
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