Ensinar gênero na escola não é apenas importante: é
fundamental para a compreensão e a prática dos direitos humanos na nossa
sociedade. A ignorância é a mãe de todos os preconceitos e, como dizemos todos
os dias, a educação é o único instrumento capaz de combater a ignorância.
Entretanto, é necessário muito cuidado e atenção na
abordagem do tema de gênero na escola, nesses tempos de extremada “vigilância
de costumes”, em que pseudo moralistas, afogados em seus próprios medos e
dúvidas existenciais, estão permanentemente na espreita tentando achar e
denunciar o que eles chamam de “doutrinação” de crianças e jovens para o
desregramento moral e a libertinagem.
O problema é que, se de um lado, esses abutres guardiães da
moralidade estão a postos na sua incansável caçada por carniça, de outro a
escola, na maioria das vezes, está completamente despreparada para lidar com a temática
de gênero, tanto quanto já estava despreparada para lidar com a questão da
sexualidade. Por causa desse despreparo, a escola pode acabar produzindo, involuntária
e ingenuamente, e com a melhor das intenções, “provas” suficientes para ser
incriminada pelos pelotões de falsos moralistas a serviço de doutrinas políticas
e religiosas fundamentalistas altamente reacionárias e retrógradas.
Nesse artigo, procurei listar os principais
cuidados que devem ser tomados pela escola no ensino e no debate de questões de
gênero (e de sexualidade) com seus alunos, professores, pais e
colaboradores.
1 – Escolher os
conteúdos que serão abordados levando-se em conta primordialmente a faixa
etária e o nível de escolarização/entendimento dos alunos.
Nem todo conteúdo de gênero pode ser entendido/apreendido
indistintamente por crianças e jovens de qualquer faixa etária. Trata-se de uma
simples questão de “progressão pedagógica”, válida para qualquer tipo de
conteúdo que se queira ministrar aos alunos. Não é possível ensinar equações de
2º grau sem que os alunos dominem razoavelmente as equações de 1º grau. Da
mesma forma, não é possível ensinar/discutir o que é uma “transgressão de
gênero” sem que os alunos compreendam o significado de gênero. Por outro lado, o próprio conceito de
“transgressão de gênero” pode não ter significado algum para faixas etárias
que, pelo seu próprio desenvolvimento, ainda sequer se deram conta do que
significa transgredir regras sociais de conduta.
2 – Planejar
didaticamente as formas mais adequadas de levar cada conteúdo previsto até cada
um dos públicos-alvo.
Por melhores e mais qualificados que sejam os especialistas
presentes, nem sempre uma mesa redonda é o melhor recurso didático para
expor/debater a questão de gênero. Pode ser que a fala dos especialistas esteja
muito acima do nível de entendimento dos alunos. Pode ser que os assuntos
apresentados não fiquem concatenados na cabeça dos alunos, produzindo mais
confusão e dúvida do que entendimento. Por outro lado, sem uma condução
especializada e segura, rodas de conversa ou exibição de filmes, conduzidas de
maneira informal com os alunos, podem servir apenas para consolidar mitos e
crenças infundadas sobre gênero, em vez de produzir esclarecimento e
aprendizado. Em síntese, mesas-redonda, palestras, filmes e/ou rodas de
conversa não são formas universais de exposição da temática de gênero, válidas indistintamente
para quaisquer públicos e situações específicas. A forma de intervenção deve
ser cuidadosamente estudada junto com os próprios conteúdos escolhidos, tendo
em vista as características e demandas de cada público-alvo.
3 – Escolher, com bastante cuidado, as pessoas e/ou profissionais que farão exposições, conduzirão debates e rodas de conversa e debates e participarão das intervenções programadas junto aos alunos.
O critério é basicamente simples: a pessoa escolhida está autorizada a
expor o assunto de maneira didaticamente adequada, como exigem os requisitos
pedagógicos de uma boa educação? É preciso que as pessoas e especialistas convidados
tenham, antes de tudo, uma formação adequada para expor os assuntos programados
de maneira didática e acessível a cada um dos públicos-alvo.
Por outro lado, é preciso ter sempre em vista que um ótimo
cozinheiro pode não ser a pessoa mais adequada falar de técnicas de culinária
ou, só porque a pessoa viveu um processo pessoal de gênero, ela seja capaz de
transmitir aos alunos os conhecimentos fundamentais sobre a questão. “Subcelebridades”,
por sua vez, podem até atrair a atenção do público, mas será que têm a
competência técnica necessária para expor os fundamentos de gênero?
Sem dizer da importância que todo o corpo funcional da
escola, incluindo dirigentes, professores e colaboradores, recebam um
treinamento básico sobre gênero, mesmo que não estejam atuando diretamente no
programa. Uma vez que é o corpo funcional que lida diária e diretamente com
questões de gênero, é ele quem deve estar preparado antes que se deflagre qualquer
programa de gênero na escola.
4 - Proselitismo e
ativismo devem ficar fora e o mais distante possível do processo de ensino de gênero.
Setores fundamentalistas, altamente conservadores e
reacionários da sociedade, estão permanentemente antenados para localizar e
denunciar o que eles chamam de “doutrinação de gênero”. Assim, é muito
importante que a escola cuide para que exposições de natureza
didático/pedagógicas sobre gênero não sejam vistas nem transformadas em proselitismo
político e/ou em manifestações de ativismo pró-direitos civis de mulheres e/ou
pessoas LGBT. Embora legítimas e
necessárias, a escola não é exatamente o espaço mais adequado para tais
manifestações. O foco deve ser educar e esclarecer os alunos em questões de
gênero, não “fazer a cabeça” de quem quer que seja.
5 – Sempre apresentar antecipadamente aos pais e responsáveis, os conteúdos e programas de gênero que a escola pretende desenvolver com seus alunos num determinado período.
Deixar que mães, pais e responsáveis resolvam, soberanamente,
se os temas e conteúdos devem ou não ser abordados com os alunos da forma
proposta, considerando suas respectivas faixas etárias e nível de entendimento.
Jamais omitir ou tentar ocultar deles, sob alguma roupagem “mais palatável”, os
conteúdos que a escola está pensando em transmitir aos seus alunos. E se os pais não quiserem? Bom, cabe à escola ter argumentos suficientes para mostrar a eles a importância de todo conteúdo que ela deseje oferecer aos alunos. E se a escola é suficientemente clara e convicente, com argumentos seguros e bem-fundamentados, é muito provável que conquiste o apoio de uma boa maioria de mães, pais e responsáveis. Em última instância, se for assunto vencido e encerrado numa dada reunião, é obrigação da escola reapresentar o tema, de outra maneira, em outras reuniões de pais.
5 – Evitar
sistematicamente a inclusão nos programas de questões consideradas controversas,
polêmicas e/ou explosivas.
No Brasil contemporâneo, a abordagem de gênero na escola tornou-se,
em si mesma, uma questão controvertida, sujeita a muita tempestades de raios e
trovões. Assim sendo, a escola já exercerá muito bem o seu papel de educadora
se conseguir levar até os alunos uma conceituação básica relacionada a gênero.
Para tanto, não é necessário incluir, de cara, no cardápio temas altamente como
liberalização do aborto ou cirurgia de transgenitalização. O fundamental é ter
um arroz-com-feijão bem feito; as outras iguarias devem ficar fora do cardápio básico.
6 – Evitar sistematicamente “checar” e, mais ainda, “chocar” os valores dos alunos, das suas famílias e da sociedade.
O ensino de gênero não pode ser visto como um mecanismo de “checagem”
das estruturas sociais, mas de informação e conhecimento da natureza e do
funcionamento dessas mesmas estruturas. Não cabe à escola “checar” e muito
menos “chocar” os valores dos seus alunos e/ou das famílias dos seus alunos. Um
embate dessa natureza resultará inevitavelmente em um conflito onde a escola
tem tudo a perder e absolutamente nada para ganhar.
7 - Manter os programas simples e objetivos, evitanto grandes estardalhaços no tratamento da questão do ensino de gênero na escola.
Em matéria de gênero, a escola precisa conter o seu ímpeto
da galinha que acabou de botar o ovo e ser discreta ao máximo, tanto no preparo
quanto na divulgação e implementação de programas de gênero. Dirigentes,
professores e demais colaboradores devem se conter para não produzir nenhum
grande estardalhaço em torno da temática de gênero, fato que poderá por em
risco a própria implementação do programa.
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Letícia Lanz é psicanalista clínica, mestra em sociologia
pela UFPR e especialista em gênero e sexualidade pela UERJ. É autora do livro O
CORPO DA ROUPA, atualmente em sua 2ª edição. Clique aqui para adquirir o seu exemplar.
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