A população transgênera não é homogênea. Muito pelo contrário, ela é a cara da diversidade de gênero, com suas dezenas, centenas, de transidentidades cuja principal característica em comum, quando não é a única, é a transgressão da norma binária de gênero.
Apesar da sua imensa diversidade, a população transgênera é ostensivamente reduzida a duas ou três transidentidades que não só se consideram hegemônicas, como desprezam solenemente todas as demais, considerando-as “transidentidades fake”, “usurpadoras” das conquistas históricas e do “lugar de fala” da insólita dupla identitária travesti-transexual, que se considera dona absoluta do espaço trans no país.
Junto com a vasta diversidade transgênera, oportunisticamente reduzida a duas ou três transidentidades, também se faz tábua rasa das inúmeras interseccionalidades do mundo trans com outras dimensões da vida socioeconômica, interseccionalidades essas que intervêm de maneira radicais na formação e no comportamento das transidentidades. Apenas a título de ilustração do que eu digo, pessoas trans pobres, negras, de baixa escolaridade, que buscam refúgio na prostituição como única forma de sobrevivência, têm um perfil e necessidades inteiramente distintas de pessoas trans ricas, brancas, de escolaridade elevada, muito menos sujeitas às diversas formas de violência a que as primeiras estão cotidianamente submetidas.
Mas, a despeito da premência de providências de apoio e proteção ao grupo de pessoas trans de classes socioeconômicas mais à base da pirâmide, não se pode desconhecer as necessidades não menos urgentes e importantes do grupo de pessoas trans de classes socioeconômicas mais elevadas. Há que se reconhecer a transgeneridade como um fenômeno amplo, comum a todas as classes socioeconômicas, etnias, faixas etárias e níveis de escolaridade da população. Definitivamente, a transgeneridade não é um fenômeno que atinge restritamente a esse ou àquele grupo social, devendo ter, portanto, um direcionamento exclusivo para o grupo afetado, em termos de direitos civis e políticas públicas.
Entretanto, para a grande maioria da população, pessoas trans são essencialmente pessoas pobres, prostituídas e inteiramente arredias, além de perigosas e inconvenientes ao convívio social “normal” na sociedade. Seja por sorte ou por privilégio socioeconômico, algumas poucas pessoas trans escapam da “vala comum” da perversão sexual e da prostituição e conseguem virar “capa de revista”, onde as suas formas femininas altamente idealizadas são enaltecidas ao extremo, despertando os sonhos eróticos mais requintados da masculinidade. Em resumo, é isso que é mostrado pela mídia à população: pessoas trans pobres, promíscuas e continuamente violentadas e pessoas trans altamente femininas, glamourosamente erotizadas.
Esse retrato reducionista-sexista, claramente tendencioso e mal elaborado, recebe contraditoriamente o apoio de movimentos identitários, além de entidades e órgãos públicos responsáveis pela proposição e execução de políticas públicas de resgate dos direitos civis e proteção à população trans.
Organizados a partir de demandas imprescindíveis de setores muito carentes e desprotegidos da população trans, os movimentos identitários chegam mesmo a manifestar ojeriza pela participação em seus quadros de pessoas provenientes de outras camadas socioeconômicas da população, da mesma forma que desprezam solenemente a pesquisa e o conhecimento provenientes da área acadêmica de Estudos Transgêneros. Dessa forma, o que seria reforço na luta por direitos civis se transforma em luta pela simples manutenção de um poder exíguo, de conquistas pífias, diante de demandas absurdamente grandes e inadiáveis.
Assim, as lutas reivindicatórias da população trans com a sociedade pelo resgate dos direitos civis que lhe estão sendo ostensivamente negados, é substituída por inúteis e insensatas “brigas” internas entre grupelhos identitários tentando assegurar espaços de poder que, na prática, não servem para absolutamente nada.
O resultado dessas disparatadas escaramuças identitárias tem sido a manutenção, sem fundamento, totalmente artificial, de uma odiosa e execrável “hierarquia de transidentidades”, em que apenas e tão somente travestis e transexuais reivindicam “merecer” ter direitos, em detrimento de todas as demais identidades que transgridem o binômio oficial homem-mulher.
Mas a hierarquia não é só identitária, uma vez que apenas certas interseções sociopolítico-econômicas são focadas – e com total exclusividade. Ainda que as necessidades de travestis em situação permanente de vulnerabilidade precisem receber sempre atenção especial, não deve ser menor a atenção dedicada a pessoas trans de classe média que estão sofrendo em seus armários, submetidas a mecanismos familiares e comunitários de tortura que estão resultando em crescentes taxas de suicídio dentro da população trans.
Nenhuma transidentidade deve gozar de “privilégios morais” dentro do próprio gueto transgênero, uma vez que, para a população em geral, todas nós não passamos na verdade de viados e sapatões “um tanto ao quanto mais afetados”. E já que a sociedade nos vê como absolutamente iguais, independentemente de nos autoclassificarmos como transexuais, travestis, crossdressers e o escambau, deveríamos aproveitar essa visão para também agir em bloco, de maneira compacta e agressiva na busca pelos nossos direitos civis, em vez de dirigirmos a nossa agressividade tentando firmar espaços internos que não nos levarão a parte nenhuma. E que fazem a festa da sociedade cisgênera que quer negar a nossa existência e os nossos direitos, pois nos encontra fragmentadas, desestruturadas, desorganizadas e brigando entre nós.
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