sábado, 10 de dezembro de 2016

Decidi que não quero mais mudar o meu nome civil

Decidi que não quero mais mudar o meu nome civil. Até agora, tenho dito que só oficializaria o meu nome social de Letícia Lanz quando o projeto de lei João Nery ou equivalente fosse aprovado pelo legislativo federal. Mas cheguei à conclusão de que isso é uma maneira de colaborar para a reafirmação do binarismo de gênero.

Enquadrar-me no dispositivo binário não muda nem melhora em nada a minha vida, só servindo para diminuir o desconforto da sociedade em ter que me reconhecer dentro de categorias em que, oficialmente, o meu acesso está totalmente vedado.

Causa muito mal estar ao sistema binário de gênero ter que tolerar e respeitar um macho de nascimento, por isso mesmo classificado como homem ao nascer, nos papéis sociais de marido, numa relação matrimonial de 40 anos, de pai de três filhos e de avô de quatro netos.

Esse mal estar, aliás, não é só na sociedade mas também dentro do próprio gueto transgênero, que já me repudiou muito  e ainda me repudia, em virtude de eu estar ferindo sagrados cânones em vigor nos antiquados movimentos organizados de transexuais e travestis, que não admitiam, e ainda não admitem, em hipótese nenhuma, uma pessoa trans MtF (masculino para feminino) que não tenha atração por homens e não deseje ser reconhecida 100% como mulher. 

Por essa razão mesma, fui muito tempo chamada de “homem vestido de mulher” por pessoas que, por pura conveniência, se autodenominam como “trans” pois, no fundo, desejam apenas ser admitidas como 100% homens ou 100% mulheres em um clube que não as quis, não as quer e nunca vai querer que elas figurem em seus quadros enquanto existir o famigerado sistema binário de gênero.

O que incomoda tremendamente à sociedade e aos “movimentos organizados” é eu “passar” como pessoa inteiramente em conformidade aos estereótipos de mulher em vigor, e mulher bastante feminina e atraente, sendo macho de nascimento. Se eu não “passasse”, ou seja, se eu fosse apenas o tal “homem vestido de mulher” que eles dizem, tentando desconhecer e desqualificar o meu perfil naturalmente feminino, não haveria nenhum problema para eles.

Mas eu passo, e esse fato, que me causou tanto desalento ao longo da vida, por ser obrigado a ser e a agir como homem, tendo nascido com a aparência de mulher e me sentindo inteiramente como mulher por dentro, agora é a eles que causa desconforto.

Incomoda-lhes tremendamente eu recusar meu enquadramento no sistema binário de gênero, afirmando não ser nem homem, nem mulher, nem trans, mas Letícia Lanz, uma construção de mim mesma.

Incomoda-lhes eu recusar terminantemente ser chamado de “marida” (urgh!) da minha mulher; “mãe” ou “pãe” (que horror!) dos meus filhos, de quem sempre fui, sou e serei pai e de “avó” dos meus netos, pois sou avô deles, como eles se acostumaram a me reconhecer e me chamar desde que nasceram, independentemente da minha identidade e expressão de gênero.

Eu não estou a fim de contribuir de maneira nenhuma para reafirmar o dispositivo binário de gênero, que considero ser o grande inimigo da liberdade individual, ao impedir as pessoas de se expressarem como elas realmente são, submetendo-as a absurdas normas de gênero, que vão desde o que cada indivíduo pode ou não vestir até que papéis sociais pode ou não desempenhar na vida.

Portanto, o meu nome, para a sociedade civil, continuará sendo Geraldo Eustáquio de Souza. É o nome que está nos meus documentos, que são os instrumentos através dos quais a sociedade (ainda) me reconhece como cidadão. Vou fazer questão de continuar exibindo esse nome masculino, sendo na prática a exuberante Letícia Lanz, como forma de forçar ainda mais a sociedade a me reconhecer como gente, que é tudo que eu quero e espero dela.

É a eles, não a mim, que causa desconforto e mal-estar chamar uma mulher, uma senhora, por um nome masculino. São eles, portanto, que devem resolver os conflitos provocados pelo "fundamentalismo de gênero" deles, pois a mim isso não incomoda nem um pouco. 

Eu me chamo de eu. Os outros que me chamem como quiserem. 



9 comentários:

Anônimo disse...

Tá aí, gostei da máxima. Isso facilita as coisas pra você. Se a sociedade tem problemas mentais conservadores para aceitar o que fazem questão de ignorar, agora que fiquem na saia justa. (Fani)

Rosiene Galdino disse...

Arrasou, Parabéns sou sua admiradora de carteirinha. E admiro a pessoa que você é, independente de gênero, sexo, ou orientação sexual.

*********** disse...

Depois de vc....os outros são os outros e só! Bom dia, EU!

Rev.Cristiano disse...

Estar bem adaptado a uma sociedade doente, não pode ser sinal de saúde!

Rafa disse...

Letícia, que linda sua atitude! De todo modo, não sei qual a opção das demais pessoas trans (eu mesmo não sou), mas pensando em privilégios (no meu especialmente, de não ter que passar por muitas coisas), o que será que as demais pessoas pensam sobre isso, dentro dos esquadrinhamentos sociais que atravessam a todas elas (a nós)? Veja, é só ponto para um debate. E repito: Admiro você e esta sua atitude! beijas!

Letícia Lanz disse...

Oi Rafa,
Dentro do gueto, as pessoas ficam muito seduzidas pela ideia de que serão incluídas e aceitas pela sociedade se cumprirem todos os rituais de enquadramento numa dada categoria de gênero. E isso não é verdade pois, como eu afirmei no artigo, o sistema binário de gênero recusa ostensivamente qualquer tipo de transidentidade, por mais apropriada que ela seja aos estereótipos de gênero vigentes.

Sandra CA disse...

Concordo plenamente com sua postura!!!!!

Camila Garcia disse...

Entendo e respeito sua posição. Eu optei pela mudança de registro, pois ela veio de encontro a um anseio de minha alma, pois nunca me senti confortável com um nome masculino. A nova documentação me abriu muitas portas e ajudou a firmar minha posição na sociedade, pois era sempre vexatória a contradição entre minha aparência e minha antiga identidade.

Unknown disse...

Sempre uma grata alegria ler algo seu e ver como ser humano que é e como se entende já basta.
Sou sua fã e admiradora de toda a sua história!