sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

Todo neurótico é uma criança machucada

Já ouviu falar de masoquismo psíquico? Não? Pois se trata de uma condição em que a pessoa investe pesado no sofrimento como forma de sentir prazer. Pra ela se sentir bem, tem que se sentir mal.

Freud postulou a existência de duas forças antagônicas atuando dentro de cada pessoa, às quais chamou respectivamente de “Eros” e “Tânatos”, em homenagem à divindade grega do amor e da vida (Eros) e à divindade grega da morte (Tânatos). Segundo ele, essas forças se encontram permanentemente em conflito dentro de cada pessoa. É a eventual vitória momentânea de uma sobre a outra que produz os estados de euforia e depressão nos indivíduos.

Na pessoa neurótica, entretanto, não há nenhum investimento psíquico em Eros, ou seja, na vida. Toda a sua energia vital é canalizada para Tânatos, ou seja, para o sofrimento e a morte.

Freud se intrigou bastante com o fato das pessoas investirem sua energia vital (libido) na produção de sofrimento. Escreveu ele em 1937: “nada me provoca uma impressão mais profunda do que as resistências que encontro nos indivíduos para o tratamento da neurose. É como se estivesse atuando dentro deles uma força que se defende de todos os modos possíveis contra a cura e que se agarra obstinadamente ao sofrimento e à doença”.

O neurótico não só reage a estímulos negativos do ambiente como também os procura obstinadamente. Por que? Para encontrar razões que justifiquem a sua neurose! Ou seja, o processo é de uma circularidade perversa – um círculo vicioso – em que o neurótico, como mostrou Freud, busca compulsivamente “atualizar” os traumas existenciais que deram origem à sua neurose mediante a repetição ad infinitum desses mesmos fatos ou de fatos não necessariamente semelhantes, mas para os quais transfere o trauma originalmente sentido, muito, mas muito especialmente mesmo, na infância.

Todo neurótico é uma criança machucada, que não deu conta de elaborar a dor sentida no momento em que foi ferida. Ora, é sabido que comportamentos que não contribuem para a adaptação, autodefesa ou melhoria das condições de vida de um indivíduo tendem a ser suprimidos. Mas tal não ocorre com a neurose que, em vez de extinguir o comportamento neurótico, reforça-o permanentemente, prejudicando muito as demais funções vitais da pessoa. A neurose segue uma lei completamente oposta ao princípio da extinção de comportamentos que não produzem recompensas, levando o indivíduo a buscar, compulsivamente, comportamentos que geram e reforçam mecanismos de queixa e autopunição, uma espécie de “lei de autodestruição”, cujos princípios gerais são enumerados a seguir:

RIGIDEZ - A “criança machucada” é uma estrutura rígida que resiste a toda e qualquer mudança, seja na natureza, na forma ou na intensidade das suas ações. O sentimento de ser rejeitado, desvalorizado e não-acolhido que surgiu lá na infância tende a ser indefinidamente repetido na fase adulta. Essa é a famosa “compulsão à repetição”, postulada por Freud.

IMUNIDADE A INFLUÊNCIAS DO MUNDO EXTERIOR – A “criança machucada” tenta permanecer imune a toda e qualquer influência do mundo exterior. Pirracenta diante da sua própria dor, teima em não mudar o seu comportamento, a despeito das mudanças ocorridas ao seu redor. Ainda que o ambiente seja tranquilo, acolhedor e não emita nenhum sinal de perigo, a “criança machucada” continuará a desempenhar o papel de “pobre coitada” e vítima indefesa das circunstâncias, enxergando todo mundo como pessoas basicamente não-acolhedoras, críticas, ameaçadoras e hostis.

AUTONOMIA – a “criança machucada” tem vontade própria e normalmente age CONTRA a vontade consciente da pessoa que a abriga. É por isso que muitos neuróticos experimentam seus sintomas neuróticos como alheios ao seu próprio eu. A neurose é uma obsessão que tem vida própria e que aparece automaticamente, involuntariamente, como se fosse uma espécie de possessão demoníaca.

TENDÊNCIA A SE AUTOPERPETUAR – a neurose tende a permanecer ativa e a ganhar força e intensidade com o correr dos anos, procurando seu alimento em situações, sentimentos, sensações, lugares e pessoas que possam reforçar os estímulos negativos que precisa para continuar viva.

RESISTÊNCIA À SUPRESSÃO – tentativas da própria pessoa neurótica ou de outras pessoas que se disponham a ajuda-la a eliminar a neurose, especialmente analistas, encontram uma enorme e sutil resistência por parte da “criança machucada”.

INCONSCIÊNCIA DA PRÓPRIA NEUROSE – o próprio neurótico dificilmente experimenta sua neurose como uma estratégia de auto-destruição, um investimento psíquico em Tânatos. Ao seu ver, o que sente não é proveniente de nenhuma neurose, mas resultado das investidas do mundo contra ele. É assim que o neurótico justifica e legitima sua permanente “indignação queixosa” contra tudo e contra todos. 

Bibliografia:
VAN DEN AARDDWEG, Gerard J.M. Autopiedade neurótica e terapia antiqueixa. São Paulo : Cortez e Moraes, 1978.

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