Nunca vou me esquecer do que foi gritado, na minha cara, por uma importante liderança do movimento trav-trans, essas duas nebulosas transidentidades que se julgam únicas e hegemônicas dentro da população transgênera do país:
- Você não representa ninguém aqui. Não pode dizer nada sobre travestis e transexuais porque nunca fez pista.
- Você não representa ninguém aqui. Não pode dizer nada sobre travestis e transexuais porque nunca fez pista.
Pra quem não sabe, “fazer pista” significa prostituir-se nas esquinas do país. Na época, não levei a sério aquela colocação/ameaça/desqualificação, preferindo considera-la apenas como mais uma besteira dita por uma lider trav-trans mal preparada, mal informada e mal educada.
Hoje, passados vários anos do ocorrido, sou obrigada a passar em revista a acusação da tal líder trav-trans. O fato de eu não ser puta, de nunca ter feito pista de, muito pelo contrário, ser uma mulher transgênera, lésbica e monogâmica, casada há quarenta anos como a mesma mulher, parece desqualificar sensivelmente a minha fala para outras pessoas dentro do gueto.
Não sei se por protesto, vontade de aparecer ou puro e simples gosto pela putaria, um grande número de LGBTs sente uma necessidade imensa de “causar” em público, de ser protagonista dos mais bizarros, exóticos e excêntricos estereótipos de gênero e de orientação sexual, chamando ainda mais a atenção da população cisgênera-heteronormativa, sempre ávida por dissecar (e esculhambar!) a intimidade e a reputação de pessoas lésbicas, gays, bissexuais e transgêneras.
Como impedir que a maioria moralista e puritana sociedade nos veja e, por decorrência, nos trate como um bando de devassas, indecentes e depravadas, se há tantas de nós fazendo questão de “peitar por peitar” os valores (hipócritas) desse povo, do qual, infelizmente, dependemos para a concessão dos nossos mais elementares direitos de cidadania?
Não se trata de se reprimir ou de bloquear a livre expressão da identidade de gênero e da sexualidade da pessoa transgênera. Não é disso que estou falando, que a vida inteira tenho lutado pelo direito de cada pessoa ser quem ela é. Trata-se apenas de desnecessariamente reforçar argumentos de setores reacionários e fundamentalistas cristãos da sociedade.
Pois enquanto putaria continuar a ser vista como honraria e laurel pelo próprio gueto transgênero será ainda maior a dificuldade de sermos inseridas na sociedade como cidadãs e cidadãos comuns, em pleno gozo dos nossos direitos civis. Que empresa, por exemplo, estará a fim de abrir vagas para pessoas transgêneras cuja imagem pública é só de putaria e devassidão?
Uma palavra final: eu continuo descartando a opinião infame da líder trav-trans ao meu respeito, dizendo que eu não podia falar em nome da população trans por jamais ter feito pista. Falo sim, pois eu sei que represento muito mais do essa parcela que faz muito barulho e aparece muito mais do que deve, sempre em benefício próprio pois, em termos coletivos, só consegue deteriorar ainda mais o nosso status dentro da sociedade.
(Letícia Lanz)
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