Medicina
e transgeneridade são duas entidades que não têm quase nada para se entenderem
e que têm quase tudo para entrar em choque uma com a outra no mundo contemporâneo.
Existem, sim, profissionais sérios e dedicados na área de saúde. Mas não
adianta o esforço desses zelosos e abnegados profissionais tentando salvar a
pátria da medicina, enquanto a medicina se mantiver atrelada ao conceito de
transgeneridade como uma categoria de distúrbio mental, requerendo tratamento
clínico. Qualquer forma de diálogo sincero e produtivo é simplesmente
impossível enquanto a medicina insistir em classificar pessoas transgêneras
como “doentes”.
Por
causa das transgressões das normas de conduta do dispositivo binário de gênero,
transgressões essas que configuram e caracterizam as próprias vivências transgêneras,
a medicina (bem como a psicologia) entendeu que deveria patologizar a condição
transgênera e toda e qualquer expressão transidentitária de gênero.
Além
de totalmente simplório considerando-se o atual estoque de conhecimento da
humanidade, o pensamento positivista, frio e determinista da medicina (e da
psicologia) é que, se alguém discorda do seu sexo genital e/ou tenta se
expressar publicamente como membro do sexo oposto (para a medicina ainda não
existe gênero...), essa pessoa deve possuir alguma desordem mental, pois, se
estivesse em pleno domínio da sua capacidade psíquica, nunca duvidaria nem
poria em questão o sexo com que foi “brindada” pela natureza.
A
medicina chegou a essa conclusão simplista e nela tem se mantido firme por mais
de um século, tratando com arrogância e desprezo toda forma de contestação, por
mais bem fundamentada que seja, sem se dar ao menos o trabalho de examinar a
origem das tais “desordens” mentais, deixando essa tarefa “menor” para ciências
“menores”, como a sociologia e a antropologia. Por mais que médicos
“progressistas” queiram dar ao “diagnóstico” e ao “tratamento” das
transidentidades um ar de total compreensão e apoio da condição transgênera, no
fundo continuam a pregar e a praticar com a comunidade transgênera uma medicina
de caráter meramente “curativo”, que visa ao “pleno restabelecimento” da
“saúde” da pessoa “transtornada”, ou seja, sua plena reintegração aos padrões
sociopolítico-culturais de conduta de gênero, ainda vistos pela medicina como
padrões naturais, apesar da sua total arbitrariedade e artificialidade.
Pode-se
afirmar, com segurança, que há mais de um século não surgiu nenhum linguajar
novo da medicina em relação às pessoas transgêneras. Está tudo como estava
(talvez até um pouco pior) na época em que foi escrita a temida obra Psychopathia Sexualis (Psicopatia Sexual)
do não menos temido psiquiatra alemão Richard Kraft-Ebbing. Nessa obra, ainda
hoje em pleno uso pela medicina, Kraft-Ebbing classificou e transformou em
desvio de personalidade e transtorno mental toda expressão de gênero e prática
sexual fora do binário oficial de gênero homem-mulher e da heterossexualidade
compulsória.
Como comparei no
meu livro O Corpo da Roupa, a obra de
Kraft-Ebbing só tem similar no Maleus
Maleficarum (O Martelo das Bruxas), dos abades alemães James Sprenger e
Heinrich Kraemer, que serviu de referência para que a inquisição mandasse
centenas de milhares de mulheres para a fogueira.
A
partir do final do século XIX, e baseada em obras tão histéricas e mal enjambradas
como a Psychopatia Sexualis, a
medicina também mandou para a fogueira milhares de pessoas transgêneras,
negando o caráter eminentemente políticossocial e cultural do seu
desajustamento e atribuindo o seu comportamento transgressivo a manifestações
de transtornos mentais. Os ícones da medicina trans da segunda metade do século
XX, os médicos Harry Benjamin, Robert Stoller e John Money, não aliviaram em
nada a visão determinista e patologizada da condição transgênera, construída a
partir de Kraft-Ebbing e seus seguidores.
No
estágio em que se encontra e com a visão mais ampla e politizada que temos da condição
transgênera, a medicina ainda teima em espelhar e reproduzir a matriz cultural
baseada no binarismo de gênero e na heterossexualidade compulsória. A medicina
jamais se interessou seriamente pela condição transgênera fora desse quadro
patologizador/curandeirista. Jamais considerou as expressões trangêneras a
partir da transgressão de normas do dispositivo binário de gênero, instituído e
mantido a ferro e fogo pela sociedade, que constituem a verdadeira causa da “doença”
que a medicina insiste em imputar à população transgênera.
Em
vez de compreensão e apoio para a plena inserção das pessoas transgêneras como
pessoas normais e saudáveis na sociedade, até hoje a medicina só acenou com a
possibilidade, falsa, de “cura” de uma doença que não existe. Por meio de
procedimentos como hormonização e cirurgia de reaparelhamento genital, que, a
rigor, apenas estetizam, ao mesmo tempo que despolitizam a questão transgênera,
as autoridades da medicina, particularmente da medicina psiquiátrica e plástica,
desempenharam e desempenham os seus papéis de mantenedores e reforçadores da
ordem binária de gênero em vigor na sociedade.
Trata-se
de um legado cruel, que fez e ainda faz padecer a população transgênera diante
de uma sociedade que, com esse auxílio luxuoso da medicina vai continuar tratando
as transidentidades como doentes e delinquentes, por mais intervenções
cirúrgicas ou tratamentos hormonais que receba.
Querem
curar? Então curem a sociedade para que ela pare de achar que são doentes
pessoas que apenas não vivem de acordo com antigas e ultrapassadas convenções
sociais.
Um comentário:
A não aceitação dos diferentes, já demonstra que a Sociedade é doente, ou vc se enquadra ou é "doente"
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