sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Senhores médicos: curem primeiro a sociedade doente, em vez de tentar “curar” a transgeneridade, que nunca foi doença

Medicina e transgeneridade são duas entidades que não têm quase nada para se entenderem e que têm quase tudo para entrar em choque uma com a outra no mundo contemporâneo. Existem, sim, profissionais sérios e dedicados na área de saúde. Mas não adianta o esforço desses zelosos e abnegados profissionais tentando salvar a pátria da medicina, enquanto a medicina se mantiver atrelada ao conceito de transgeneridade como uma categoria de distúrbio mental, requerendo tratamento clínico. Qualquer forma de diálogo sincero e produtivo é simplesmente impossível enquanto a medicina insistir em classificar pessoas transgêneras como “doentes”. 
 
Por causa das transgressões das normas de conduta do dispositivo binário de gênero, transgressões essas que configuram e caracterizam as próprias vivências transgêneras, a medicina (bem como a psicologia) entendeu que deveria patologizar a condição transgênera e toda e qualquer expressão transidentitária de gênero.  
 
Além de totalmente simplório considerando-se o atual estoque de conhecimento da humanidade, o pensamento positivista, frio e determinista da medicina (e da psicologia) é que, se alguém discorda do seu sexo genital e/ou tenta se expressar publicamente como membro do sexo oposto (para a medicina ainda não existe gênero...), essa pessoa deve possuir alguma desordem mental, pois, se estivesse em pleno domínio da sua capacidade psíquica, nunca duvidaria nem poria em questão o sexo com que foi “brindada” pela natureza. 
 
A medicina chegou a essa conclusão simplista e nela tem se mantido firme por mais de um século, tratando com arrogância e desprezo toda forma de contestação, por mais bem fundamentada que seja, sem se dar ao menos o trabalho de examinar a origem das tais “desordens” mentais, deixando essa tarefa “menor” para ciências “menores”, como a sociologia e a antropologia. Por mais que médicos “progressistas” queiram dar ao “diagnóstico” e ao “tratamento” das transidentidades um ar de total compreensão e apoio da condição transgênera, no fundo continuam a pregar e a praticar com a comunidade transgênera uma medicina de caráter meramente “curativo”, que visa ao “pleno restabelecimento” da “saúde” da pessoa “transtornada”, ou seja, sua plena reintegração aos padrões sociopolítico-culturais de conduta de gênero, ainda vistos pela medicina como padrões naturais, apesar da sua total arbitrariedade e artificialidade. 
 
Pode-se afirmar, com segurança, que há mais de um século não surgiu nenhum linguajar novo da medicina em relação às pessoas transgêneras. Está tudo como estava (talvez até um pouco pior) na época em que foi escrita a temida obra Psychopathia Sexualis (Psicopatia Sexual) do não menos temido psiquiatra alemão Richard Kraft-Ebbing. Nessa obra, ainda hoje em pleno uso pela medicina, Kraft-Ebbing classificou e transformou em desvio de personalidade e transtorno mental toda expressão de gênero e prática sexual fora do binário oficial de gênero homem-mulher e da heterossexualidade compulsória.          
 
Como comparei no meu livro O Corpo da Roupa, a obra de Kraft-Ebbing só tem similar no Maleus Maleficarum (O Martelo das Bruxas), dos abades alemães James Sprenger e Heinrich Kraemer, que serviu de referência para que a inquisição mandasse centenas de milhares de mulheres para a fogueira.
 
A partir do final do século XIX, e baseada em obras tão histéricas e mal enjambradas como a Psychopatia Sexualis, a medicina também mandou para a fogueira milhares de pessoas transgêneras, negando o caráter eminentemente políticossocial e cultural do seu desajustamento e atribuindo o seu comportamento transgressivo a manifestações de transtornos mentais. Os ícones da medicina trans da segunda metade do século XX, os médicos Harry Benjamin, Robert Stoller e John Money, não aliviaram em nada a visão determinista e patologizada da condição transgênera, construída a partir de Kraft-Ebbing e seus seguidores. 
 
No estágio em que se encontra e com a visão mais ampla e politizada que temos da condição transgênera, a medicina ainda teima em espelhar e reproduzir a matriz cultural baseada no binarismo de gênero e na heterossexualidade compulsória. A medicina jamais se interessou seriamente pela condição transgênera fora desse quadro patologizador/curandeirista. Jamais considerou as expressões trangêneras a partir da transgressão de normas do dispositivo binário de gênero, instituído e mantido a ferro e fogo pela sociedade, que constituem a verdadeira causa da “doença” que a medicina insiste em imputar à população transgênera.  
 
Em vez de compreensão e apoio para a plena inserção das pessoas transgêneras como pessoas normais e saudáveis na sociedade, até hoje a medicina só acenou com a possibilidade, falsa, de “cura” de uma doença que não existe. Por meio de procedimentos como hormonização e cirurgia de reaparelhamento genital, que, a rigor, apenas estetizam, ao mesmo tempo que despolitizam a questão transgênera, as autoridades da medicina, particularmente da medicina psiquiátrica e plástica, desempenharam e desempenham os seus papéis de mantenedores e reforçadores da ordem binária de gênero em vigor na sociedade. 
 
Trata-se de um legado cruel, que fez e ainda faz padecer a população transgênera diante de uma sociedade que, com esse auxílio luxuoso da medicina vai continuar tratando as transidentidades como doentes e delinquentes, por mais intervenções cirúrgicas ou tratamentos hormonais que receba. 
 
Querem curar? Então curem a sociedade para que ela pare de achar que são doentes pessoas que apenas não vivem de acordo com antigas e ultrapassadas convenções sociais.

Um comentário:

Roberta CrossDressing disse...

A não aceitação dos diferentes, já demonstra que a Sociedade é doente, ou vc se enquadra ou é "doente"