The Rock Horror Picture Show: Tim Burton, 1975; Laverne Cox, 2016 |
Dividir as pessoas transgêneras em "ene" identidades de gênero, sem nenhuma consistência semântica, é a pior estratégia possível na luta pelo resgate dos direitos dessa população. Independentemente do rótulo identitário que as pessoas transgêneras resolvam assumir, para o público em geral elas não passam de gays e lésbicas “mais ousadas e afetadas”. Aliás, esses rótulos quase sempre são criados e mantidos pelas pessoas muito mais para satisfazer seus egos inflados do que para manifestar suas identidades sociais gênero-divergentes.
Há muito tempo não faz mais nenhum sentido falar nessas velhas e desgastadas diferenciações entre travesti, transexual, crossdresser, dragqueen e transformista, dentre outras identidades alojadas debaixo do guarda-chuva transgênero. Os critérios diferenciadores, que já não diziam muita coisa no passado, hoje estão completamente defasados. Será que travesti ainda é alguém que se veste com roupas do gênero oposto e que não tem nenhum desejo de fazer cirurgia de readequação genital? Será que transexual é a pessoa para quem essa cirurgia é questão de vida ou morte? Será que dragqueen e transformista são o gay que se monta como mulher, exclusivamente para fazer shows em casas noturnas? Que crossdresser é homem heterossexual que se monta com requintes de perfeição apenas como passatempo, pelo prazer de se sentir mulher?
Contrariando as esdrúxulas definições identitárias ainda em uso entre nós, há travestis que desejam, sim, fazer cirurgia de readequação genital, assim como há transexuais que não pensam em fazer nenhum tipo de modificação corporal. Há dragqueens que se operam e crossdressers que transicionam definitivamente, transformando o seu “passatempo” em atividade diária, sete dias por semana, 365 dias por ano. Apesar da insustentabilidade conceitual dessas identidades, exaustivamente desconstruídas no meu livro O Corpo da Roupa, as pessoas parecem se deleitar em manter acesas as cinzas dessa visão identitária radical, completamente moribunda e sem significado no mundo contemporâneo.
Enquanto velhas identidades agonizam com a desconstrução e o esvaziamento dos seus antigos significados, a todo momento assistimos o surgimento de novas nomenclaturas identitárias, que já nascem moribundas, sem nenhuma consistência semântica ou sociocultural. É o caso das categorias identitárias dos chamados “não-binários” e dos “queers”, a primeira se definindo pela rejeição integral de qualquer vínculo com o binário oficial homem-mulher, e a segunda tentando transformar em identidade uma palavra que ficou popularizada pela Teoria Queer, exatamente um enfoque teórico que se caracteriza por combater todo e qualquer tipo de identidade.
Contudo, sempre que eu tento checar, desmistificar e desconstruir conceitos identitários totalmente inconsistentes (além, é claro, de socialmente mais-do-que-degradados), escuto a velha ladainha de quem não quer mudar, de quem prefere perder a guerra a mudar a estratégia de luta:
- Não podemos abrir mão dessas nomenclaturas. Essas identidades ainda são muito importantes e necessárias para a instalação e a manutenção de políticas públicas diferenciadas...
Não vale nem a pena discutir o primarismo e a inocência política de tal abordagem. Basta dizer que, apesar de ela estar “no ar” há décadas, tudo que se conseguiu até hoje, em termos de avanço de direitos para a população transgênera foi uma fila para cirurgia de reaparelhamento genital no sistema público de saúde, em que muitas pessoas já se encontram há mais de uma década. Definitivamente, a desjudicialização da troca de prenome civil, que anteriormente podia levar anos, não pode ser considerada como uma conquista dos movimentos identitários que, de certa forma, foram até mesmo tomados de uma certa surpresa quando o STF – Supremo Tribunal Federal, interpretando a Constituição da República, autorizou as pessoas transgêneras a alterarem o nome civil com uma simples ida ao cartório mais próximo.
Tudo que é sólido se desmancha no ar. A frase lapidar de Marx traduz com precisão o mundo transgênero contemporâneo, especialmente no Brasil, onde a mistificação e o atraso conceitual sempre encontram terreno fértil para prosperar, em meio à desinformação e alienação geral.
A luta pelos direitos civis das pessoas trans no Brasil depende da superação dessa fase pueril-adolescente de defesa intransigente de expressões identitárias e siglas que nada significam, que só servem para confirmar aspectos irrelevantes para a condição transgênera, como modificação corporal e sexualidade, coisas de caráter inteiramente particular de cada pessoa, que jamais deveriam ser tomadas como elementos centrais da vida de uma pessoa trans, como ainda são fortemente consideradas.
A única coisa comum que existe dentro da multiplicidade de identidades gênero-divergentes é a transgressão das normas de conduta de gênero. Se é que se pode graduar transgressão, é ela, em maior ou menor grau - e nenhuma outra coisa - que condena a pessoa transgênera a ser alguém “fora-da-norma” e, portanto, anormal, sujeitando-a às terríveis penas de que ela é vítima no dia-a-dia: repúdio, estigma, discriminação, violência e exclusão, dentre outras maldades socialmente reservadas para pessoas infratoras de dispositivos sociais de controle, como é o caso do gênero.
A única luta que faz realmente sentido, que pode produzir avanços significativos no resgate dos direitos civis das pessoas transgêneras, é a luta pelo fim da classificação das pessoas em função do seu órgão genital. É esse processo de diferenciação e hierarquização social que transforma automaticamente em pessoas “não-conformes” todas aquelas que desobedecem à regra básica de enquadramento do dispositivo binário de gênero.
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