Nascida macho, fui enquadrada na categoria masculina de gênero, e durante décadas tive que fazer um esforço enorme para passar como homem, por não me enquadrar nos estereótipos de homem em vigor na sociedade.
Assumir a identidade feminina de gênero foi, assim, um alívio por não ter que me expressar mais numa categoria de gênero que não tinha nada a ver comigo.
Mas a minha luta não diminuiu depois que eu transicionei. Só que em vez de continuar brigando dentro do mundo cis, passei a brigar dentro do mundo transgênero, para combater – e vencer – inúmeros outros estereótipos de gênero que, embora diferentes dos que eu tive que enfrentar até então, mostravam ser tão incômodos e opressivo quanto eles.
O primeiro estereótipo que tive que enfrentar dentro do gueto transgênero foi quanto à época adequada na vida de uma pessoa para ela transicionar. A norma vigente dentro do mundo trans estabelecia que a transição deveria ocorrer o mais cedo possível na vida da pessoa trans, totalmente ao contrário da minha, ocorrida já tardiamente. Se a pessoa não transicionou cedo, babau, nunca mais: ta fora do clube.
Transicionei, com sucesso, justamente numa idade em que a retrógrada ideologia trans ainda em pleno vigor no Brasil, país sabidamente dado a atrasos homéricos, não admite a ideia de alguém transicionar.
No rol das condutas besteirológicas ainda tão comuns no meio trans, uma delas é a que silencia inteiramente sobre a existência de pessoas trans com mais idade. Ou seja, o gueto promove e patrocina a invisibilização das pessoas trans mais velhas, repetindo o mesmo tipo de “saneamento” que a mídia faz, ao silenciar-se por completo sobre a existência de uma enorme população transgênera no Brasil.
Muitas vezes são as próprias pessoas transgêneras em idade mais “avançada”, que fogem de aparecer em público por se acharem muito velhas e feias e, portanto, completamente fora do “glamour sexy" do mundo trans.
Esse é outro capítulo infame dessa doutrina trans que, infelizmente, ainda é muito popular entre nós. É essa doutrina que afirma veladamente, para não “parecer” politicamente incorreta, que mulheres transgêneras são sempre jovens e bonitas; que pessoas feias e desajeitadas, que não “passam” como mulheres “transbelas” não merecem (nem devem) ser reconhecidas como mulheres trans, pois não passam de homens “vestidos” de mulher.
O outro estereótipo contra o qual tive que lutar muito para me afirmar dentro do gueto trans foi quanto à minha orientação sexual. Ser uma transmulher que gosta de mulher soava – e ainda soa - como abominável heresia dentro do território trans. Também pudera! O tal “movimento nacional organizado” nasceu e vive completamente “a reboque” do movimento gay. De tal forma que “transexual” e “travesti” (as duas únicas categorias oficialmente “representadas” pelo movimento nacional organizado) não passam de tipos particulares de gays. Um absurdo e um total contrassenso.
Por isso, o “movimento nacional organizado” continua confundindo (e adorando confundir!!!) orientação sexual com identidade e expressão de gênero. Também por isso, tive que ouvir que eu não passava de "homem vestido de mulher", forma de tratamento de desprezo e desconsideração que, evidentemente, recebi apenas como ofensa menor de trans-pessoas trans-ignorantes e trans-preconceituosas. Mas que não deixa de ser uma fina ironia pois, como disse antes, quase sempre eu era tratada como mulher vestida de homem, dentro do mundo cis.
Pra finalizar, quero dizer que quase todas as organizações trav-trans nesse país estabeleceram e mantêm rígidas listas de quesitos, atributos e condutas pessoais, em função das quais admitem – ou rejeitam – novas pessoas associadas em seus quadros. Quem não se enquadra nessas extensivas relações de estereótipos, simplesmente não é considerada pessoa trans e, portanto, está fora da “cobertura do clube”.
Muitos desses critérios (se não todos!), são absurdamente cis-heteronormativos e transfóbicos. E essas organizações trav-trans “não trocam de roupa” para excluir e discriminar pessoas que não se enquadram nos seus critérios de enquadramento. Dessa forma, a transfobia, tão arraigada na nossa sociedade e nossa mídia, está também firmemente plantada no nosso próprio terreno, e seus frutos venenosos se espalham por todo o nosso território transgênero.
Assim, não é apenas dos esgotos da sociedade cisgênera que escorre a "sujeira transfóbica" de que somos vítimas. Certamente uma das tarefas mais importantes que temos pela frente, na luta pelo reconhecimento dos direitos das pessoas transgêneras, é o de exorcizarmos nossa própria aldeia dos estereótipos de gênero que vigoram entre nós.
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