É triste quando estraga um calçado que você gosta muito e recebe do sapateiro o veredito de que, infelizmente, ele não tem mais conserto. Só comprando outro.
No íntimo, só de olhar o tamanho do estrago no calçado, a gente não só já sabia que não ia ter conserto como também sabia que dificilmente pode encontrar um modelo ao menos parecido com ele. A moda muda e raramente as coleções se repetem de um ano para outro. Por isso mesmo, a tentativa de ir ao sapateiro, esse profissional em franca extinção, numa época em que não se conserta mais nada.
O desejo evidente, por trás de tudo, era de não mudar, de dar um jeitinho no estrago e continuar desfrutando para sempre daquele estimado calçado.
Embora a maioria não entre em depressão pelo fim da vida útil de um simples par de sapatos (ainda que muito querido), não deixa de ser bastante desconfortável constatar que ele chegou ao final da sua vida útil. E que, por melhor que os seus pés se ajustem à sua fôrma, ou que você encontre um gozo estético no uso daquele calçado, o seu destino tornou-se inevitavelmente o lixo.
Assim também se passa com o nosso “calçado existencial”. Pouco a pouco, ou mesmo de repente, você descobre um estrago no seu precioso “estilo de vida”. Ele passa a deixar você na mão a toda hora, ou, para ser fiel à metáfora que estou usando neste artigo, está deixando você cada vez mais “descalça” em muitas situações do seu dia-a-dia.
Só que, ao contrário do sapato em fim de carreira, cujo estrago pode ser constatado a olho nu, as pessoas não conseguem ver o estrago do modelo de vida que têm adotado. A maioria, aliás, ao se ver completamente descalça para enfrentar o “baile de cobras” que é viver no mundo contemporâneo, tenta escorar-se mais ainda no seu “precioso” (e completamente degradado) estilo de vida, sem perceber ou, pior, negando veementemente, que ele é o grande responsável por todas as suas atribulações.
Poucas pessoas se dispõem a passar em revista seu modelo de vida, discutindo seus fundamentos em algum processo de análise individual ou de grupo. Contudo, quem supera a arrogância de achar que está tudo certo com ela e que o mundo é que está cada vez mais errado, tem a chance de descobrir mais rapidamente que o estado depauperado do seu modelo existencial não tem conserto, isto é, não comporta mais nenhuma reforma: que precisa urgentemente ser substituído por outro.
Por mais dor que cause separar-se de um modelo de vida no qual você se ajustou tão bem, por tanto tempo, não tem outro jeito: ou você troca por outro ou continua de pé-no-chão, pisando em caco-de-vidro a toda hora.
Melhor sair logo para olhar os novos lançamentos de calçados nas vitrines dos shoppings ou, se não quiser nem ter o trabalho de sair de casa, surfando nas milhões de páginas da internet que apresentam todos os tipos de modelos, para todos os tipos de gostos, necessidades e ocasiões.
Mas cuidado: não vá cair na armadilha de ficar procurando por um modelo exatamente igual ou o mais parecido possível com esse que está indo para o lixo. No caso do calçado, ainda passa. Mas no caso do modelo existencial, vai ser apenas trocar um grande aborrecimento por outro.
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