sábado, 15 de outubro de 2016

A insana luta por supremacia entre identidades transgêneras

Marsha Johnson e Sylvia Rivera, a dragqueen negra
e a mulher transgênera que iniciaram a revolta de Stonewall

A luta pelos direitos civis da população transgênera estará ganha quando perguntarem a uma pessoa trans o que ela é, e ela responder simplesmente: uma pessoa igual a você, ué!

Hoje, a resposta passa por um naipe cada vez maior de transidentidades, ou seja, identidades gênero-divergentes, todas conceitualmente obscuras, já que as distinções entre elas, quando não ridículas, são meras diferenças de grau da mesma transgressão da norma de gênero. Mas as pessoas que se identificam com cada uma dessas transidentidades repetem mecanicamente, que são aquilo, sem tentarem ao menos entender – e, por consequência, explicar – o que é que estão realmente expressando ao dizer que são isso ou aquilo. Pior, brigando loucamente entre si para defenderem suas transidentidades de unhas e dentes, como se fossem o Santo Graal.

No mundo cisgênero, pelo menos, a disputa é uma só: ou se é homem, ou se é mulher. Uma vez que a identidade masculina continua a ter supremacia (quase totalmente) absoluta sobre a mulher, inclusive amealhando os melhores salários no mercado de trabalho, as disputas contemporâneas se resumem à busca por plena igualdade de direitos e oportunidades entre homens e mulheres.

Nossa luta não é por identidades, mas por direitos. Direitos que são devidos a toda pessoa transgênera, não em função da transidentidade em que ela se reconhece e se apresenta na sociedade, mas pelo simples fato de ser uma pessoa transgênera. Hoje, dentro do gueto transgênero, ainda é feroz a disputa pela hegemonia dessa ou aquela transidentidade. Disputa tola e mesquinha que constitui um verdadeiro desastre estratégico na luta pelos direitos civis das pessoas transgêneras. Nada melhor para os setores reacionários e conservadores da sociedade que as pessoas que demandam seus direitos permaneçam identitariamente fragmentadas e brigando umas com as outras. Estaremos completamente flanqueadas, inteiramente nas mãos da sociedade cisgênera, sem nenhuma possibilidade consistente de ataque e defesa, enquanto houver transexual (diga-se de passagem, um termo altamente inadequado para designar uma transidentidade, já que o sufixo “sexual” se refere a sexo, e não a gênero) querendo se sobrepor às travestis, negando legitimidade aos crossdressers e vendo nas transformistas e dragqueens apenas uma profissão.

Só uma coisa distingue a população transgênera da população cisgênera: a transgressão das normas de gênero. Enquanto as pessoas cisgêneras cumprem prazerosamente o seu ritual diário de convívio harmônico e confortável com a sua identidade de gênero – de homem ou de mulher – recebida ao nascer, as pessoas transgêneras transgridem essas mesmas normas, de muitas e de variadas maneiras, em vários graus de duração e intensidade. É também exclusivamente em funções dessas grandes e pequenas transgressões, transitórias ou definitivas, que a sociedade nos repudia, retalia, exclui e pune com severidade. Discutir filigranas comportamentais dessa ou daquela identidade, como fazer ou não mudanças corporais, e, pior, em função dessas filigranas estabelecer pesadas fronteiras entre identidades transgressoras, é dar um tiro no próprio pé, desconhecendo a verdadeira causa de todos os nossos males, que é a sociedade nos tratar como transgressoras das normas de gênero.

É contra essas normas de gênero, totalmente inúteis e supérfluas no mundo hoje, que devemos lutar. Não entre nós, contra nós.

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