sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Ansiedade Transfóbica

A ansiedade é um estado de intensa mobilização física e psíquica, caracterizado por severa apreensão e permanente vigília, provocado pela antecipação mental de um evento, real ou imaginário, que alguém, ao seu critério, considera potencialmente ameaçador à sua integridade, gerando medo e insegurança na pessoa.

Embora os eventos causadores de ansiedade variem sensivelmente de pessoa para pessoa, a maioria das pessoas costuma ser afetada por alguns notórios produtores de ansiedade, como falar em público, fazer uma prova ou uma entrevista de emprego ou ver aproximar-se a data limite para o pagamento de uma dívida que a pessoa não tem o dinheiro para pagar.

Em princípio, a ansiedade é uma manifestação psíquica natural nos seres humanos, não devendo ser motivo de maiores preocupações clínicas, a menos que se torne crônica, passando a apresentar-se na forma de fobias, ataques de pânico e ansiedade social.

Como manifestação psíquica natural, a ansiedade está presente sempre que uma pessoa sente que pode ou tem que ter contato com uma pessoa ou situação para ela ainda estranha e desconhecida.

Desse ponto de vista, considerando o grau de “estranheza”, estigma e preconceito da condição transgênera na sociedade “normal-cisgênera”, é de se esperar que haja sempre alguma ansiedade no primeiro contato, real ou imaginário, entre pessoas transgêneras e pessoas cisgêneras que nunca se encontraram antes. Em ambas haverá um pouco, ou bastante ou muito do que o senso comum chama de “um pé atrás”.

A ansiedade transfóbica tanto pode ser vista como um tipo de ansiedade causada em alguém pela presença física ou a possibilidade de contato com pessoas transgêneras, quanto a ansiedade causada numa pessoa transgênera pela presença real ou imaginária de pessoas preconceituosas em relação à sua condição trans.

Ou seja, ela tanto pode atingir indivíduos preconceituosos e potencialmente transfóbicos em relação a pessoas transgêneras, quanto atingir pessoas transgêneras, excessiva e demasiadamente preocupadas com os efeitos que a sua presença física poderá causar nas outras pessoas e no ambiente à sua volta.

Nas pessoas preconceituosas e potencialmente transfóbicas os sintomas desse tipo de ansiedade podem ser detectados numa série de pequenos episódios comportamentais que nem sempre são facilmente identificados pela pessoa transgênera presente numa dada situação.

Às vezes, entretanto, a ansiedade transfóbica consegue se esconder muito bem debaixo de um relacionamento que, superficialmente, parece estar sendo extremamente gentil e acolhedor. Esse é ponto: um relacionamento excessivamente gentil e cuidadoso, em vez de demonstrar um acolhimento sincero, pode estar demonstrando examente o contrário, ou seja, uma clara tentativa de manipulação e distanciamento social.


Felizmente são mais raras essas manifestações de ansiedade transfóbica altamente dissimuladas, como acima descrito. No dia a dia, as manifestações mais comuns são:

1 – Afobação e pressa, como se a pessoa quisesse ficar livre o quanto antes do contato que está tendo com a pessoa transgênera.
2 – Grosseria e rispidez no trato interpessoal, demonstrando claramente indisposição e má-vontade em manter contato com a pessoa transgênera.
3 – Formalismo em excesso (burocratização da relação), com a pessoa se ancorando de maneira rígida em formalidades exageradas ou atendo-se exclusivamente “ao que diz o regulamento”.
4 – Desatenção atenta, em que a pessoa finge que não vê e mesmo que não está na presença de uma pessoa transgênera, agindo como se estivesse completamente desligada de tudo mas, no fundo, extremamente antenada e estupefata com a sua presença.
5 – Desculpas altamente esfarrapadas, como aquelas com que muitos recrutadores das empresas rejeitam a contratação de pessoas transgêneras para compor seus quadros.
6 – Piedade neurótica (superioridade clássica), em que a pessoa transgênera é tratada como alguém inferior e “digno de pena” por alguém que se sente muito superior a ela na hierarquia social.

Por sua vez, do lado da pessoa transgênera, entre as manifestações mais comuns de ansiedade transfóbica estão:

1 – Desprezo premeditado pelo ambiente e pelas pessoas, o clássico “eu não preciso nem de você, nem de ninguém”, que é uma forma de defesa antecipada contra as investidas do ambiente, uma vez que a pessoa transgênera se considera permanentemente como vítima em potencial.
2 – Acentuação da presença física (choque no ambiente), mediante o uso de roupas, gestos, falas e outros exageros comportamentais que denunciam desmesuradamente a presença física da pessoa transgênera.
3 – Cabeça baixa ("coitadismo" de mim), em que a pessoa transgênera já se apresenta, antecipadamente, como uma vítima da sociedade, completamente conformada com a sua condição e claramente disponível para “levar ferro” no que for.
4 – Agressividade não-controlada (Grosseria e rispidez no trato interpessoal), demonstrando claramente indisposição e má-vontade em manter contato com a pessoa cisgênera, “do outro lado do balcão”. A coisa vira guerra mundial quando, “do outro lado do balcão”, a pessoa cisgênera também demonstra ansiedade transfóbica através de grosseria e rispidez no trato interpessoal com a pessoa trans.
5 – Afetação, literalmente como consta no dicionário Houaiss: ausência de naturalidade, modo artificial de ser; exageração de sentimentos, atitude fingida, falsa; desejo de atrair admiração; vaidade, pedantismo, presunção.
6 – Narcisismo ferido, eu tenho mais direito do que todo mundo aqui.

Como eu afirmei no início do artigo, ansiedade é um comportamento normal do dia-a-dia e só é preocupante quanto se torna repetitivo e/ou se intensifica de maneira sufocante.

Viver em um mundo maciçamente cisgênero, sendo uma pessoa transgênera, gera potencialmente muita ansiedade, tanto nas pessoas transgêneras quanto nas pessoas cisgêneras.

Vai caber a cada uma das partes reduzir, minimizar os efeitos e, quem sabe, até eliminar os efeitos sempre danosos da ansiedade transfóbica. Mas é preciso lembrar sempre que, do lado das pessoas transgêneras, nada pode ser feito para combater a ansiedade transfóbica das pessoas cisgêneras: as outras pessoas só mudam se elas quiserem mudar.

Talvez essa seja mesmo a pior manifestação de ansiedade transfóbica do lado das pessoas transgêneras: o desejo que o outro mude, à força, se for preciso, o que ele sente, pensa e como age em relação às pessoas trans.

Não cabe a nós mudar os outros, mas cabe a nós mudar a nós mesmas. Essa é a primeira e a mais necessária “cura” da nossa própria ansiedade transfóbica.

Um comentário:

Sandra CA disse...

E a ansiedade de saber-se não se adequar a mundo nenhum? Ser Queer, em um mundo em que não querem que vc exista!???