Há anos não me coloco nem como homem nem como mulher nem como trans, mas tão somente como Letícia Lanz, uma construção de mim mesma. Todas as pessoas que me conhecem sabem do meu esforço, contra tudo e contra todos, para desconstruir e combater identidades de gênero enquanto marcadores de hierarquias e produtores de privilégios e desigualdades entre os seres humanos.
Obviamente, o que está errado, o que é patológico, é a norma binária de gênero, não a pessoa que, pelos motivos mais variados do mundo, não se ajusta a ela. Não sou eu que sou doente, mas a sociedade que acha que eu sou doente ou delinquente por recusar a classificação de gênero que ela me impôs ao nascer, à minha inteira revelia, única e exclusivamente em função do órgão genital que veio comigo entre as pernas. Como digo sempre, doente é a sociedade que me acha doente por eu me recusar a aderir às suas "doenças estruturais" e ainda combatê-las com veemência.
Infelizmente, sou ainda muito pouco compreendida e, por isso mesmo, duramente criticada por pessoas ingênuas e desavisadas que dizem que estou “castrando” o seu desejo genuíno de pertencimento à outra categoria de gênero, oposta àquela em que foram enquadradas ao nascer. Trata-se evidentemente de uma cegueira sem tamanho, que leva essas pessoas até mesmo a desconhecer o fato que eu própria vivo como mulher 24h por dia, ao mesmo tempo que recuso terminantemente ser rotulada pura e simplesmente de mulher. E que faço isso exatamente para marcar uma posição revolucionária de não-adesão ao modelo binário de gênero.
Para essas pessoas trans, a questão identitária vem muito adiante da questão dos seus próprios direitos civis. Elas acham preferível ser diagnosticadas como “doentes”, portadoras de transtorno mental grave, do que lutar pelo direito de serem reconhecidas como são, sem ter que carregar o estigma de não-conformidade que lhes é imposto pela sociedade doente que aí está. Elas preferem se submeter à uniformidade arbitrária, artificial, enfadonha e neurotizante de apenas duas categorias de gênero, num universo de mais de 7 bilhões de pessoas, do que engajar-se em um grande pacto coletivo pelo direito à livre manifestação da diversidade humana.
Na realidade, a absurda predominância da visão binarista de gênero dos auto-denominados “movimentos organizados trans” apenas reflete o desejo primário e inconsequente de tantas pessoas transgêneras, vítimas desse mesmo binarismo, em querer “apenas” se adequar a ele, em vez de combate-lo com todas as suas forças, ele que é, em essência, a fonte de todos os seus tormentos existenciais.
A maioria desses movimentos mantém “mecanismos de triagem”, em que as pessoas que se candidatam a membros são previamente avaliadas com base em padrões altamente estereotipados de identidade e expressão binária de gênero. É assim que eles rotulam, excluem e separam as pessoas, da mesma forma arrogante, artificial e arbitrária que a sociedade patriarcal-heterossexual-cisgênera adota para marginalizar e excluir pessoas transgêneras.
Esse expediente de “seleção de sócias”, aliás, já havia sido denunciado por Judith Butler na sua obra Problemas de Gênero, onde ela afirma que o movimento feminista (e, por extensão, todo movimento de caráter identitário), mediante intensa doutrinação e “modelagem” comportamental, acaba criando o tipo idealizado de membros em defesa dos quais pretende existir.
Quando você rotula, separa, discrimina e exclui alguém em função da sua “adequação” a determinado padrão de identidade ou expressão de gênero, reforça a munição do dispositivo binário de gênero em que a regra dominante é a existência de duas e somente duas categorias de gênero: homem ou mulher, feitos assim pelo próprio criador, em pessoa. Essa crença religiosa inteiramente metafísica tem sido sustentada por uma biologia completamente ultrapassada, de caráter essencialista, que postula ser a identidade de “gênero” (e a expressão dele) uma decorrência “natural” da herança genética de cada indivíduo, e que nega, refuta a importância e faz vista grossa para o papel crucial da socialização na constituição do sujeito individual de cada pessoa.
Os notáveis avanços da mulher na ocupação de espaços na sociedade contemporânea, colocou em risco a hegemonia do sistema patriarcal de dominação, em vigor há milênios na humanidade. Diante desse fato, a partir da década de 1990 a direita político-religiosa norte-americana e, posteriormente, os setores altamente reacionários e retrógrados do catolicismo romano, formaram uma poderosa aliança internacional de forças conservadoras que tem conseguido se articular com muita eficácia no ataque sistemático ao conceito de gênero, cuidadosamente escolhido por eles como foco principal da sua guerra contra o progresso dos direitos humanos.
Agregando, de forma absolutamente inusitada, tanto os setores mais conservadores e antiprogressistas de várias confissões religiosas quanto setores conservadores laicos da sociedade, esse verdadeiro exército anti-gênero já está em pleno combate há quase duas décadas e, apesar das suas inúmeras divergências doutrinárias em diversos campos, tem conseguido grandes vitórias no seu objetivo comum de frustrar, solapar e demolir todo e qualquer avanço dos direitos humanos, particularmente no campo do gênero e da sexualidade.
A ação corrosiva dessa liga inclui o ataque permanente e sistemático a todo tipo de pleito relacionado à igualdade entre os sexos, à educação sexual e de gênero nas escolas, à família homoafetiva e transgênera, e aos direitos da população transgênera.
Em razão dessa guerra aberta ao “gênero”, falsa e pejorativamente apelidado de “ideologia de gênero”, qualquer iniciativa que abone, reforce ou reitere o binarismo de gênero deve ser visto como um verdadeiro suicídio político para o movimento transgênero.
Por isso eu rechaço, com todas as minhas forças, a “ingenuidade romântica” de pessoas e movimentos trans que defendem o direito de querer ser mulher ou ser homem, não como uma expressão do próprio ser de cada pessoa, mas como forma de engajamento ao sistema binário cuja “defesa incondicional” é o principal propósito dessa guerra de gênero que está sendo travada contra nós pelas forças mais conservadoras e antiprogressistas da sociedade.
Em vez de reafirmar o binarismo de gênero, é necessário e urgente desconstruir, retirar e combater todo e qualquer tipo de apoio ao dispositivo binário de gênero, mecanismo de classificação, hierarquização e controle dos seres humanos nas duas categorias identitárias oficiais de homem e mulher em função única e exclusivamente do sexo biológico dos indivíduos.
Inocentemente, podem estar – como efetivamente estão – reafirmando a “essencialidade” do gênero como decorrência “natural” do sexo das pessoas, o que, se de um lado anula e desmoraliza a visão de gênero como resultante do lento processo de assimilação de discursos normativos da masculinidade e da feminilidade, de outro faz com que essas pessoas e movimentos, que “se dizem” libertários, sejam, na realidade, agentes colaboradores do conservadorismo mais tacanho, torpe e sacana que existe na sociedade, núcleo de rejeição e combate a qualquer manifestação da diversidade e fluidez de gênero na sociedade humana.
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