Embora o termo, infelizmente, possa sugerir essa associação, “gênero” definitivamente não tem nada a ver com “genes”, que caracterizam nossa herança biológica, mas com “memes”, termo criado pelo biólogo Richard Dawkins para caracterizar que, além da herança genética, estamos todas sujeitas a uma inexorável “herança cultural”. O que quero dizer, portanto, é que gênero não é “herdado biologicamente” mas “herdado culturalmente” e aprendido por transmissão social (socialização).
Somos homens ou mulheres por determinação da sociedade, não por inexorável imposição da natureza, como querem nos fazer crer setores ultrarreacionários da igreja católica, evangélicos fundamentalistas e profissionais de saúde física e mental cujas práticas continuam estacionadas no início do século XX.
A visão de gênero a partir desse “essencialismo biológico” baseia-se na crença de que as diferenças comportamentais entre homem e mulher resultam de um inexorável determinismo da natureza ou, de maneira ainda mais metafísica, da “vontade de Deus”, que “já nos fez” homem e mulher, de acordo com a bíblia, negando o papel fundamental da “herança cultural”, ou dos “memes”, na construção sociopolítica-cultural do que chamamos de homem e de mulher.
A natureza não tem nenhum compromisso em fornecer indivíduos com pênis que correspondam exatamente às expectativas da sociedade quanto ao que seja homem nem em fornecer indivíduos com vagina que correspondam aos modelos sociais de mulher. Por conta dela, somos apenas machos ou fêmeas, dependendo da nossa função no processo de reprodução sexuada próprio da espécie humana.
Exigir que as pessoas se apresentem e se comportem de acordo com os modelos sociopolítico-culturais de homem e de mulher em vigor na sociedade, exclusivamente em função do órgão genital, de macho ou de fêmea, que trazem entre as pernas, é uma nítida forma de intimidação, opressão e controle do ser humano.
Gênero é tão “naturalizado” como se fosse decorrência do sexo biológico que é sempre necessário explicar minuciosamente o que ele é e como funciona esse dispositivo social de controle.
Podemos imaginar o gênero como uma espécie de “território nacional” onde as pessoas só são aceitas como cidadãs se tiverem nascido no local, como atualmente pretende o famigerado Trump. Assim, só porque alguém "se sente" membro de um determinado território de gênero, não significa que será automaticamente reconhecido como cidadão do lugar, tal como ocorre com cidadãos estrangeiros no território norte-americano.
Muito ao contrário, o mais provável é que a pessoa que “se sente” cidadã, sem ser cidadã, seja ostensivamente rechaçada pelos que acreditam e defendem a ideia de que cidadania está reservada apenas e tão somente a quem “nasceu no lugar”.
Da mesma forma, só porque alguém expressa sua “identidade de gênero”, dizendo "se sentir" mulher ou homem, não significa que a sociedade irá reconhecer automaticamente a sua “cidadania” de homem ou de mulher.
Não é assim que a coisa funciona: para ser homem ou ser mulher é preciso que você “tenha nascido” respectivamente macho ou fêmea.
Esse direito ao autorreconhecimento da identidade de gênero é exatamente o que é ostensivamente negado às pessoas transgêneras ou gênero-desviantes. Esse é justamente o direito que hoje não existe, um direito que ainda precisa ser conquistado.
Tudo bem que a pessoa, num delírio pessoal, queira dizer que é 100% mulher. Para as normas de gênero que aí estão, a pessoa JAMAIS SERÁ reconhecida como tal. Toda pessoa que tentar manifestar-se como mulher, tendo nascido com um pênis, ou como homem, tendo nascido com uma vagina, será imediatamente considerada como transgressora da ordem vigente e submetida às duras penas reservadas a quem infringe as normas de conduta social.
O “essencialismo biológico-divino” cria sujeitos de discurso impossíveis de serem mimetizados fora dos contextos sociopolítico-culturais embutidos nas suas próprias definições. A menos que se mudem inteiramente essas definições, tarefa que depende de engajamento político e luta intensa contra a ordem vigente, os genes vão continuar fingindo ter supremacia absoluta sobre os “memes”.
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