Meu sexo biológico é macho mas há bastante tempo que eu vivo como mulher 24 horas por dia. Tenho autocrítica suficiente para saber que atendo, com folga, os requisitos dos estereótipos de mulher vigentes na nossa sociedade. Sou uma mulher chique, vaidosa, sofisticada, me produzo muito bem, além de ser estudiosa, culta e muito preparada profissionalmente.
Pra quem não sabe, sempre tive desejo de fazer a cirurgia de transgenitalização, desde que soube, há mais de 50 anos, da existência desse procedimento, quando tinha apenas 9 anos de idade e a maioria das pessoas que me julgam uma descompensada-insensata-prepotente ainda nem era nascida.
Acresça-se à minha história o fato de eu ter apresentado, desde a minha infância, sem nenhuma intervenção cirúrgica “feminizante”, um fenótipo que sempre esteve muito mais próximo do de uma fêmea do que de um macho-genético padrão. Isso tem me valido constrangimentos a vida inteira, inclusive o de nunca ter conseguido passar 100% como homem, vivendo como homem. Adicionalmente, nunca tive pomo-de-adão, quase não tinha pelos, sempre tive voz mais fina e de timbre suave e nunca tive que fazer grandes esforços para ser vista como uma mulher.
Tudo estaria perfeito se eu resolvesse dizer aos quatro ventos que eu sou uma mulher presa num corpo de homem, pois esse é o discurso certo para se obter altíssimo ibope junto aos setores mais reacionários e conservadores do mundo trans. Mas acontece que eu caí na besteira de ser uma aberração: uma mulher presa num corpo de mulher! Esse discurso põe por terra a cereja do bolo trans que é a ideia de “corpos inadequados” que precisam de “se refazer” – não pelo puro prazer de se ter o corpo que se quer (o corpo meu e eu faço dele o que eu quiser, sempre!) – mas para serem reconhecidos e enquadrados em outra categoria de gênero que a sociedade não teve a “sensibilidade” de reconhecer que era a da pessoa trans, no momento do seu nascimento.
Meu “desenquadramento”, porém, dos modelos amplamente aceitos e consagrados de gênero – homem e mulher – não parava alí, pois minha orientação sexual sempre foi ginecófila, o que significa que, além de ser uma mulher, sem o “direito sociopolítico-cultural de ser, eu sempre tive atração sexual por mulheres – e não por homens – como nos obriga a doutrina patriarcal-naturalizante-heteronormativa.
Pra piorar ainda mais o caldo sinistro em que tentam me cozinhar em razão de eu ser “desviada dos desvios”, eu sou casada, tenho filhos e netos e gosto de ser chamada de “marido”, de “pai” e de “avô”. E não ligo a mínima se me chamam (menos quando é por pura sacanagem!) pelo meu nome masculino. O fato é que eu sou uma pessoa desviada dos desvios que já estão devidamente analisados, rotulados e classificados pelo gueto, e que sustentam uma trans-mitologia que quer se manter a qualquer preço.
Como pode existir alguém assim? Que diz que nunca teve nem cabeça nem corpo de homem, que vive como mulher MAS é casada com mulher e declara publicamente que não é mulher, ou melhor, que é mulher sem ser mulher, pois se recusa permanentemente a pertencer a um clube – o bestial clube do gênero – que jamais a quis ter como sócia, advindo daí todas as grandes dores e atribulações que viveu ao longo da sua vida de mais de seis décadas.
Como eu poderia – como alguém pode? – desejar pertencer a um clube que me colocou numa categoria de sócio – a categoria de sócio masculino-homem – com a qual eu jamais tive a menor afinidade? Que me obrigou a ter uma coragem além dos meus limites para romper com a farsa depois de ter vivido por cinco décadas me submetendo a ela.
Eu sou igual a muitas pessoas contemporâneas minhas que, por força das imensas dificuldades, bloqueios e restrições que enfrentam em suas vidas, continuam no armário. São pessoas que não quiseram ou não puderam desafiar o enquadramento no gênero masculino que receberam ao nascer em função do seu sexo biológico. Como todo mundo sabe, o passaporte para alguém ser classificado como homem é ter nascido um macho biológico, ou seja, com um pênis entre as pernas.
Por não corresponder aos estereótipos vigentes no gueto trans quando por lá apareci, fui e permaneço sendo alvo preferencial de petardos dos mais variados calibres, além de mentiras, divagações e difamações produzidas por mentes doentias, incapazes de entender e muito menos de aceitar a diversidade da qual, teoricamente, fazem parte.
Cada vez que defendo publicamente a infinita pluralidade do gênero, denunciando a camisa-de-força do dispositivo binário masculino/feminino, sou chamada de destruidora dos sonhos e ideais de vida de pessoas trans, boas e honestas em seus desejos e que se sentem ameaçadas pela minha cruzada anti-gênero. Ditas pessoas, muito mais por má-fé do que por limitação intelectual, esquecem-se nessa hora que eu vivo como mulher na sociedade, e que não sou uma mulher qualquer.
Devido ao seu “esquecimento” de tudo que eu narrei acima, e que não é segredo para ninguém porque já foi mostrado publicamente em programa de TV de grande audiência no país, reservam-se o direito de me tratar como seu eu fosse uma imbecil mal-informada e, sobretudo, mal-intencionada.
Pelo fato de ser casada, de ter filhos e netos, de não querer renunciar, em momento nenhum, a viver, com alegria e com toda a minha energia, os papeis e compromissos de cônjuge, pai e avô, não me reconhecem como mulher, privando-me até mesmo de me chamarem pela porcaria de nome social que defendem de unhas e dentes.
Resumindo: apesar de ser uma mulher e de me comportar socialmente como uma mulher, de ser, inclusive, reconhecida pela sociedade como mulher, mesmo o público sabendo que eu não sou, continuo a ser rechaçada, condenada, combatida e violentada, com minha honra e meus valores sendo conspurcados por mentes miúdas, dentro do gueto, que se sentem ameaçadas pelo meu estilo de vida.
Tudo que eu quero nesse mundo é ser respeitada ou, se não for possível o respeito, pelo menos a tolerância pelo que eu sou. Tudo que eu não quero nesse mundo é ser criticada, vilipendiada, achacada, agredida verbalmente, violentada no meu estilo de vida sem nenhuma consideração pela pessoa que eu sou.
Nos últimos 15 anos, tenho dedicado boa parte do meu tempo a estudar o fenômeno transgênero, tendo concluído recentemente o meu segundo mestrado, defendendo uma dissertação em sociologia sobre o tema “a pessoa transgênera entre a transgressão e a conformidade de gênero.
É evidente que não arredarei o pé um milímetro da defesa intransigente que faço do direito de cada pessoa ser o que é. De não obrigada a carregar um rotulozinho de alguma coisa. E a primeira pessoa para quem eu advogo e defendo esse direito sou eu mesma., vítima que tenho sido a vida inteira da incompreensão e da safadeza de uma sociedade que quer enquadrar todo mundo dentro de caixinhas perfeitamente previsíveis e totalmente controláveis.
Sociedade que continua tendo sucesso nessa infeliz e cruel empreitada, transformando todo mundo em “simulacros de si mesmos”, em sujeitos assujeitados, identidades construídas e mantidas dentro dos mais perfeitos estereótipos defendidos por essa sociedade hipócrita e opressora em que vivemos.
Mais uma vez eu quis deixar bem claro, em virtude na minha função de moderadora do grupo, a que finalidade ele se destina.
Transformações externas do corpo, QUAISQUER QUE SEJAM, são absolutamente desejáveis e saudáveis quando estão vinculadas ao sagrado "querer individual" de cada pessoa. Mas são o que há de mais execrável, neurótico, nocivo e grotesco quando buscadas em nome de se promover o
"ajustamento" da pessoa a uma identidade de gênero, a partir de um quadro em que o desejo dela é considerado como patológico. , pois é assim que a sociedade binária nos vê e é por isso, inclusive, que nos oferece "tratamento para a cura" através de cirurgia de transgenitalização.
A luta aqui é pela libertação do desejo! Pelo direito de cada pessoa exercitar o seu desejo sem precisar de ser diagnosticada e rotulada como doente para ter "direito" ao desejo de mudar o próprio corpo! Fico triste se você se sentiu de alguma forma excluída dessa luta ao ler a minha postagem, pois acredito que deve ser a sua luta também. Ou não é?
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