sábado, 9 de dezembro de 2017

O que querem os inventores da tal “ideologia de gênero”?

As três religiões conhecidas como religiões “do livro” – judaísmo, cristianismo e islamismo – podem ser consideradas como instituições patriarcais machistas por excelência, em que mulheres desempenham, se tanto, distantes e desempoderados “últimos lugares” na hierarquia clerical. A rigor, tratam-se de verdadeiros “clubes do Bolinha”, onde mulher não entra.

A base doutrinária dessas religiões prega fundamentalmente a superioridade absoluta do homem em relação à mulher. O homem, criado à própria imagem e semelhança de Deus (na verdade, é o contrário...), e a mulher, feita por Deus com o objetivo de servi-lo, de modo totalmente subalterno.

Por muitos milênios, as coisas funcionaram assim, sem praticamente nenhum questionamento. Qualquer afronta ao poder indiscutível do homem, terminava na fogueira, com mulheres contestadoras e rebeldes sendo queimadas como bruxas.

Contudo, nos últimos 100 anos, de uma hora para outra, esse incômodo “apêndice do homem” chamado mulher resolveu supurar, movido pela influência nociva e maléfica de teorias feministas esquerdistas, feitas para “desagregar a família”, demolir os costumes e a desagregar a boa ordem social (leia-se desalojar o homem do poder), como consta dos discursos reacionários do patriarcado em polvorosa, francamente ameaçado pela mulher desses novos tempos. 

Excluindo e marginalizando a mulher a partir das sua própria origem e constituição, a igreja não é nem um pouco recomendada - muito menos autorizada - para falar dos interesses das mulheres. Ao contrário, pode-se argumentar que, como representante oficial do patriarcado, a religião fará de tudo um pouco para aviltar, achincalhar, degradar, depreciar, desacreditar, desprezar, diminuir, enxovalhar, infamar, menosprezar, perverter e vilipendiar as demandas femininas pela ocupação do espaço a que têm direito neste mundo, se nada mais não fosse pela simples razão de serem ao menos metade da população mundial. Esse é exatamente o propósito da criação e divulgação da chamada “ideologia de gênero”, concebida por setores ultraconservadores da igreja católica como peça principal de resistência ao avanço dos direitos da mulher planeta afora.  

A chamada “ideologia de gênero” surge como um esforço desesperado de representantes do patriarcado para continuar sustentando a crença na superioridade masculina, segundo eles  “estabelecida por Deus em pessoa”. Em sua abordagem torta e mal enjambrada, a ideologia de gênero despreza, nega e combate sistematicamente a ideia de que gênero é um dispositivo sociopolítico-cultural, construído e mantido pela ordem vigente a partir da apropriação do sexo biológico, com o objetivo explícito de manter o controle dos indivíduos na vida em sociedade. Através da ideologia de gênero, padres, pastores, bispos e cardeais, todos homens, reafirmam abertamente que alguém é homem (ou mulher) porque nasceu homem (ou mulher), por vontade e obra do Criador – e não por determinação, imposição e designação da sociedade e época em que a pessoa nasceu.

A expressão “ideologia de gênero” começou a circular a partir da segunda metade da década de 1990, mais especificamente a partir do ano de 1995 e, mais especificamente ainda, a partir do IV Congresso Mundial da ONU sobre os Direitos da Mulher, realizado em Pequim, nesse mesmo ano. Desde o início, tratou-se de uma expressão inteiramente espúria, sem qualquer alcance ou significado científico, sendo totalmente estranha à terminologia empregada na importante área interdisciplinar de pesquisa acadêmica conhecida como Estudos de Gênero.

Os criadores e defensores da “ideologia de gênero” não são  pesquisadores e estudiosos de gênero, mas os detratores das descobertas e, naturalmente, das implicações sociopolítico-culturais de tais estudos e pesquisas. Não foi nenhum pesquisador e/ou estudioso de gênero quem inventou ou que defende essa excrescência teórica e prática chamada ideologia de gênero, mas ardorosos representantes da ordem masculina do mundo, também conhecida como patriarcado.

É fundamental compreender que gênero não tem nada a ver com ideologia de gênero.  Gênero é um importante conceito na área das ciências sociais que se refere à designação de atributos, papéis e comportamentos sociais aos indivíduos em função da sua genitália de macho ou de fêmea. A atribuição de gênero em função do sexo biológico está presente em todas as culturas, das mais primitivas às mais evoluídas, havendo um amplo respaldo de pesquisas e estudos acadêmicos que comprovam a ocorrência universal desse fenômeno sociocultural. Ideologia de gênero, por seu turno, diz respeito a um elenco de suposições rasteiras, maliciosas e mentirosas, baseadas em asserções retrógradas e sem fundamento, construídas a partir de mitos e crenças religiosas sem nenhuma base empírica.

A expressão ideologia de gênero foi posta em circulação por nítida má-fé dos seus inventores, desejosos de estancar o avanço dos direitos humanos no mundo contemporâneo, especialmente os direitos da mulher e da população LGBT+. No ano de 1995, o então cardeal Joseph Ratzinger, intelectual católico altamente retrógrado e conservador, chefiou a missão do Vaticano para observação do IV Congresso Mundial da ONU sobre os Direitos da Mulher que se realizava em Pequim. Nomeado posteriormente, em 2005, pelo Colégio dos Cardeais, como Papa Bento XVI era, na época, o todo-poderoso titular da Congregação para a Doutrina da Fé, a mais poderosa das nove congregações que constituem a cúria romana, sucessora da onipotente Sacra Congregação do Santo Ofício, que, por sua vez, tinha sucedido a Suprema e Sacra Congregação da Inquisição, responsável pelos tribunais que levaram para as fogueiras milhares de mulheres consideradas bruxas “hereges”, no início da Renascença. Tal como hoje gostariam de mandar para a fogueira os adeptos e praticantes dessa nova heresia criada e denominada por eles “ideologia de gênero”.

Uma breve história desse grande embuste político, revestido de falsa intelectualidade, que é a tal da “ideologia de gênero”, nos remete a uma imensa conspiração de setores altamente reacionários, ortodoxos e conservadores da igreja católica. Com o desejo explícito de “estancar a sangria” nos padrões tradicionais de organização social, provocada pelos avanços sociopolíticos-econômicos da mulher ao longo de todo o século XX, mais especialmente no seu último quartil, resolveram parir esse arranjo conceitual chinfrim, de fortíssimo viés moral e apelo para a adesão de elites sociais e econômicas obscurantistas, bem assim de camadas menos preparadas da população, à criação de barreiras e ao combate do progresso feminino registrado ao longo do século XX .

Reza a lenda que “ideologia de gênero” teria sido, ao mesmo tempo, uma expressão de assombro e de repúdio, exclamada pelo próprio cardeal Ratzinger, diante dos notáveis progressos da mulher em termos de ocupação de espaços sociais, políticos e econômicos no mundo contemporâneo, e que estavam sendo tão claramente evidenciados ali, diante dos seus olhos, na Conferência da ONU em Pequim. Complementarmente, “ideologia de gênero” era também um precioso mote moral, surgido numa hora em que a igreja buscava desesperadamente uma cortina de fumaça capaz de desviar a atenção do público mundial sobre as terríveis mazelas institucionais que se abatiam e ainda se abatem sobre o catolicismo romano.

Em 2013, Ratzinger, que ficou conhecido como o papa que usava sapatos Prada, foi o primeiro pontífice a renunciar ao trono de São Pedro em 600 anos, em meio a gravíssimos escândalos de corrupção, de fraudes financeiras e de abuso sexual de menores por padres pedófilos. Até hoje, essas contravenções continuam abalando a cúpula do catolicismo romano, a despeito do perfil nitidamente popular (e populista) do sucessor de Bento XVI, Francisco I, trunfo com o qual a cúria romana tenta desviar a atenção do público para questões pseudomorais, de modo a abafar os escândalos que, na sua maioria, seguem sem uma ação mais enérgica e decisiva da igreja católica para sua devida apuração, punição e prevenção de futuros desastres semelhantes.

A “ideologia de gênero” parece ter funcionado de modo altamente eficaz, ao ponto de ter saído da órbita do catolicismo conservador para ser adotada como item obrigatório da doutrina da extrema direita mundial. A ideia – estapafúrdia, esdrúxula e sem nenhum fundamento – de que as pessoas são homens ou mulheres porque foram feitas assim pelo Criador, sem nenhuma interferência da sociedade, acabou conseguindo adesão pelo mundo afora, servindo de sustentação para discursos misóginos e lgbtfóbicos, de políticos e de religiosos altamente reacionários. Uma das versões mais difundidas desse discurso insiste na tese completamente falsa de que a ideologia de gênero visa convencer nossas crianças e jovens de que eles podem escolher ter o sexo que quiserem, no momento em que bem desejarem.

Além de falacioso, trata-se de um discurso autocontraditório com o que diz o próprio discurso desses ideólogos de gênero, já que afirmam que o sexo, para eles algo idêntico a gênero, é definido pelo Criador antes mesmo da pessoa nascer, não podendo ser de maneira nenhuma alterado. Ora, se não pode ser alterado, como afirmam, não existe nenhuma possibilidade de uma criança ou jovem ser convencido de que pode mudar o seu sexo ao seu bel-prazer.

Se sexo, que esses ideólogos reacionários entendem como sinônimo de gênero, não pode ser alterado por ter sido obra do Criador, por que eles se empenham tanto em combater os Estudos de Gênero? Por que perdem tanto tempo tentando defender o que, segundo eles mesmos, não carece de defesa, por ser inexoravelmente imutável, uma vez que resulta da “vontade soberana do Criador”? Ora, se resulta da vontade do Criador e é “imexível” por definição deles mesmos, não haverá discurso que convença um menino que ele pode ser menina quando bem lhe aprouver – ou vice versa.

Evidentemente, ao se empenharem tanto em invalidar e combater o extenso conhecimento científico advindo de várias áreas de pesquisa e presentemente acumulado na área dos Estudos de Gênero, esses políticos, religiosos e até “cientistas” fundamentalistas estão revelando que não fazem tanta fé assim na “vontade soberana do Criador”, como apregoam por aí. Pelo contrário, temem que as multidões descubram o quanto as pessoas têm sido ludibriadas, manipuladas e controladas pelo dispositivo binário de gênero em vigor na sociedade, dispositivo esse construído a partir de crenças que, apesar de absurdas, lunáticas, ilógicas e disparatadas são sustentadas pelo patriarcado. Temem especialmente que as mulheres descubram não deverem nenhum tipo de reverência ou obediência ao homem, uma vez que não há nenhuma hierarquia entre os sexos, como eles defendem, alegando que o homem foi feito à imagem do Criador e que a mulher é apenas uma criação suplementar, feita a partir de uma de suas costelas. Temem que as multidões descubram que sexo é uma coisa, e gênero é uma coisa completamente diferente de sexo; que as pessoas nascem com sexo, mas não nascem com gênero; que sexo é herdado biologicamente, enquanto gênero é aprendido socialmente; que sexo está no domínio da natureza, enquanto gênero está no domínio do discurso sociopolígico-cultural; que as pessoas nascem machos ou fêmeas, isto é, com pênis ou com vagina, mas que a simples posse de um desses órgãos não assegura a identificação natural da pessoa com os modelos do que é ser homem ou ser mulher, estabelecidos pela sociedade.

Mas o principal alvo dos inventores da “ideologia de gênero” é a mulher, ou melhor, a jornada, plenamente exitosa, de libertação da mulher do jugo do homem, ocorrida desde o final do século XIX. Não é à toa que os ataques aos Estudos de Gênero se iniciaram exatamente num Congresso da ONU em que estavam sendo apresentados os notáveis avanços da mulher na sociedade contemporânea, assim como suas reivindicações por mais espaço na sociedade, um espaço que lhe é de direito e que sempre lhe foi negado historicamente pelo homem, especialmente o homem representado por instituições tipicamente machistas e misóginas como a igreja católica apostólica romana.

O que os inventores da ideologia de gênero querem é retomar e reocupar os espaços conquistados pela mulher, que, na sua teoria de obediência e subalternidade ao homem, determinada, segundo eles, pelo próprio Criador, elas jamais deveriam nem poderiam estar ocupando. Não é à toa que, hoje em dia, os defensores mais vorazes e irados da existência de uma “ideologia de gênero” pertencem a seitas evangélicas fundamentalistas neopentecostais que defendem a obediência e a submissão irrestritas e incondicionais da mulher ao homem, com base em preceitos esdrúxulos, cuidadosamente garimpados da bíblia.

Se o discurso anti-gênero está tendo ressonância mundo afora é porque serve de cortina de fumaça para o profundo temor do homem em perder o status, que ele próprio se outorgou, de “ser superior” na hierarquia da criação (como se ele já não estivesse irrecuperavelmente perdido há muito tempo...).

Daí o discurso anti-gênero vir sempre acompanhado de uma suposta defesa da família tradicional, impolutamente composta por homem, mulher e filhos. Modelo de família que o próprio homem se encarregou de detonar, simplesmente desaparecendo da cena familiar, deixando que a maioria das mulheres cuidasse sozinha dos lares que eles sistemática e egoisticamente abandonaram e menosprezaram ao longo do século XX.

O fato é que esses inventores da “ideologia de gênero” não têm moral para defender nem ao menos seu suposto discurso moralizante. O objetivo mais-do-que evidente desses fundamentalistas misóginos é fazer o mundo acreditar que gênero é uma ideologia, ou seja, uma ficção criada por pesquisadores e estudiosos que eles rotulam de devassos, doentes, depravados e “de esquerda”. E que a mulher deve ficar no seu “lugar de mulher”, que, na visão deles, será sempre debaixo da sola do sapato do homem. Essa é a mensagem real contida na “ideologia de gênero”.

 

 

 

 

 

 

 

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