quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

O beijo da mulher transgênera

Três mulheres cis e eu. O homem cumprimenta cada uma delas com beijinhos mas, quando chega a minha vez, guardando a devida distância, simplesmente me estende a mão e aperta a minha com a delicadeza de um símio. Fico esperando aquele tapa nas costas que todo homem dá em outro homem, como se ele estivesse engasgado.

Se ele não soubesse nada ao meu respeito, teria me cumprimentado como faz com qualquer mulher genética. Como sabe, fica inibido pelo padrão cultural que lhe enfiaram goela abaixo, ao longo da sua existência. Deve pensar coisas assim:
- Estou beijando outro homem, ainda que não pareça homem, ainda que não seja homem.
- O que pensarão de mim mostrando intimidade com uma pessoa transgressora de normas de conduta da sociedade?
- E se for uma “conduta contagiosa” e, de repente, eu também me torne uma pessoa transgênera?

Nas vizinhas Argentina e Uruguai homens se cumprimentam com beijos, tal como em muitos países da Europa. Aqui, repetimos o padrão norte-americano de “machismo cowboy” em que, para um homem, homem só serve para ser vencido em duelo de filme de faroeste ou em perseguição de máquina mortífera.

Como atestam os evangelhos, até Jesus beijava outros homens. Mas beijo entre homens é algo repugnante e pecaminoso aos “olhos do Senhor”, na concepção estrambótico-destrambelhada de mundo defendida por religiosos fundamentalistas, também importada diretamente dos Estados Unidos, no mesmo pacote em que veio o breganejo e o fast-food.

O Brasil é um país essencialmente machista, e dos mais violentos e cruéis do planeta. Aqui, sacrificar mulheres e LGBTs, das formas mais torpes possíveis, é um esporte nacional com milhões de adeptos, inclusive entre mulheres.

Eu não me importo de não ser beijada por homem. Macho nunca despertou minha libido. Eu só me importo com os motivos pelos quais eu não estou sendo beijada. Enquanto motivos tolos e mesquinhos como esses prevalecerem no nosso país – e no resto do mundo – coisas como civilização, liberdade, igualdade, justiça e amor continuarão sendo inalcançáveis ficções.

2 comentários:

Unknown disse...

São paradigmas difíceis de ser quebrados. Certa vez estava trabalhando no posto de gasolina de meu pai, quando meu irmão chegou. Como sempre, o beijei no rosto. Um cliente q viu a cena, comentou com o meu pai, sem saber do parentesco entre nós: "Olha esses viados se beijando em plena luz do dia!". No que meu pai respondeu, com os olhos verdes acinzentados em chamas: "São meus filhos". Nunca amei tanto o meu pai.
As unicas demonstrações de carinho permitida entre homens são tapas e empurrões.

Sandra CA disse...

Amei!!!!