“The Pink and Blue Project”, série produzida pela fotógrafa sulcoreana JeongMee Yoon. |
Aquela
ministra zureta falou que azul é para meninos e rosa para meninas com a convicção
bíblica de estar reafirmando a palavra do próprio Deus. Evidentemente não
consegue se dar conta, dentro das suas notórias limitações intelectuais, que
roupa e cor de roupa não têm nada a ver com o que cada pessoa realmente é.
Tipo de roupa e cor de roupa são meros adornos sociopolítico-culturais e não determinismos da natureza, estabelecidos pelo Criador em pessoa. Não passam de itens convencionados pela mesma sociedade que fixa os parâmetros de gênero, que ela, ministra, tanto combate, dizendo não existir. O uso generificado das cores, assim como toda e qualquer regra de comportamento derivada do sexo genital dos indivíduos, não é “expressão da vontade de Deus ou da natureza”, mas capricho histórico, de natureza cultural e econômica, vinculado à mera vontade política dos homens. Sim, dos homens, porque, historicamente as mulheres sempre estiveram à margem dessas escolhas e imposições do patriarcado.
As cores nunca foram fixas para meninos e meninas. Azul e rosa, aliás, só muito recentemente, a partir de meados da década de 1930, e em países ocidentais, especialmente os Estados Unidos e países satélites (como é o nosso triste caso), passaram a ser os rígidos marcadores de gênero a que a destrambelhada ministra se refere nos seus mal enjambrados discursos. Até o final do século XIX, nem as vestes infantis eram diferenciadas. Meninos e meninas vestiam as mesmas roupas e tinham o cabelo grande, o que os fazia absolutamente iguais. Nem roupa nem cores de roupas eram marcadores de sexo e gênero.
O uso de cores como marcadores de gênero se dá a partir do início do século XX, quando, na cidade de Nova York, algumas lojas começaram a sugerir cores “apropriadas ao sexo”, ainda que o formato das roupas permanecesse o mesmo para meninos e meninas. Para contrariar a fala supostamente “conservadora” da ministra, a introdução do uso de cores para meninos e meninas se deu exatamente nos polos opostos da sua fala: o azul, para meninas, e o rosa, para meninos, conforme consta da publicação especializada Earnshaw’s Infants Department, de 1918, onde se lê que “a regra geralmente aceita é rosa para os meninos e azul para as meninas”. A razão disso, segundo a publicação, era que o rosa, por ser uma cor mais forte e marcante, estaria mais adequada para o varão menino, enquanto o azul, mais delicado e suave, estaria mais adequada para a menina. Uma edição de 1927 da revista Time observou que grandes lojas de departamento em Boston, Chicago e Nova York crescentemente sugeriam o rosa para os meninos e o azul para as meninas.
Os “baby boomers”, geração saída da segunda grande guerra, foram os primeiros bebês a usarem roupas marcantemente diferenciadas por cores e padrões de feitio com as quais estamos hoje familiarizadas. Meninos e meninas passaram a ser vestidos como homens e mulheres em miniatura, em vez de continuarem a ser vestidos uniformemente como crianças, tornando-se o rosa a cor das meninas, e o azul, a cor dos meninos.
Graças ao movimento das mulheres e ao movimento hippie essa marcação de cores e padrões para meninos e meninas, saída da década de 1940, passou a ser duramente repelida a partir dos anos 1960 e 1970. As pessoas (mulheres e homens) participantes desses movimentos libertários observaram que vestir meninas e meninos com roupas socialmente estereotipadas, rigidamente determinadas para cada um dos gêneros, limitaria as oportunidades de acesso e de sucesso profissional para as meninas, assim como embotaria o desenvolvimento socioemocional dos meninos. Daí muitos pais conscientes passarem a optar por cores e modas fora do binário menino-menina.
Infelizmente, na década de 1980, as roupas infantis voltaram a ser marcadamente divididas por gênero, como parte da reação patriarcal às conquistas da mulher, dos negros e da população LGBT+. A introdução das técnicas de ultrassom, que passaram a permitir a identificação do sexo biológico do bebê antes mesmo do seu nascimento, funcionou como um forte aliado da onda reacionária. Na medida em que se pôde identificar (e, por consequência, enfatizar) o sexo biológico do bebê antes do seu nascimento, desenvolveu-se toda uma estrutura de “colonização” e “naturalização” do gênero do bebê, com o mercado contribuindo decididamente para a criação e multiplicação de coisas, objetos e comportamentos “de menino” e “de menina”.
O surgimento dos “chás de revelação”, em que os pais revelam publicamente o sexo genital – macho ou fêmea – dos bebês reforçou ainda mais a regra do rosa/azul. Por mais criativas que sejam essas festas de revelação, rosa e azul continuam sendo as duas cores que os pais usam para mostrar o sexo de seus bebês.
Muita gente vai dizer: sim, e daí? Quem se importa do rosa ser para meninas e o azul para meninos? Que problema há nisso?
Muitos problemas – e grandes. O primeiro deles é que as cores são o pontapé inicial para a doutrinação de gênero, impondo aos bebês um destino no qual eles deverão compulsoriamente se encaixar. Afirmar que existem apenas duas cores que distinguem as pessoas é a mesma coisa que a firmar a existência de apenas dois gêneros, no qual você tem que se encaixar, quer queira quer não, exclusivamente em função do seu órgão genital. Se você nasceu fêmea, tem que gostar de rosa, e isso significa que você é mulher, feminina e tem atração heterossexual por homens. Se você é um menino, você não só tem que gostar de azul como não pode gostar de rosa (as mulheres ainda têm a liberdade de usar azul quando bem entenderem...)ou então você não é homem e, muito provavelmente, é viado.
Evidentemente isso tudo não passa de “convenção fiada”, norma social de comportamento de gênero que não tem nada a ver com algum inexorável dispositivo da natureza. Não é a roupa, e muito menos a cor da roupa, que define a identidade de gênero de uma pessoa. Contudo, por mais absurdo, arrogante e ridículo que seja esse código de vestuário, é ele que continua definindo na prática o que cada pessoa é e o que cada pessoa pode ser.
Em seu fabuloso espectro de cores, o arco-íris define muito melhor e com muito mais precisão e generosidade, a identidade de gênero – única – de cada pessoa. Mas essa conversa ainda está muito distante da limitada inteligência da ministra e de setores fundamentalistas da sociedade que ela representa com esmero.
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