Picasso, Lo Zoo Umano |
1. O ato de cumprimentar, puxar e manter conversa com outras pessoas é um dos adestramentos mais básicos que qualquer sociedade espera e exige dos seus membros.
2. Mas a conversa, por definição, só deve ocorrer entre IGUAIS e IGUAIS NORMAIS. O diálogo é sempre muito perigoso e ameaçador quando se trata de alguém SOCIAL, POLÍTICA ou ECONOMICAMENTE DIFERENTE. Nesse caso, a conversa, se ocorrer, será pautada no ESTRANHAMENTO que o outro é capaz de causar.
3. As pessoas aprendem desde cedo a desconfiar e a manter um pé atrás em relação ao diferente, ou seja, o não-normal, cujo perfil não se enquadra no que a sociedade define como sendo NORMAL.
4. Um fato que observo entre as pessoas que entram em contato comigo sabendo de antemão que eu sou uma pessoa transgênera é o desconforto e a falta de jeito em se relacionarem comigo.
5. Quase todas ficam indecisas entre me beijarem no rosto, como habitualmente são saudadas as mulheres, ou me estender a mão, de forma vigorosa, como habitualmente os homens se saúdam.
6. Além da falta de jeito no estabelecimento de contato, muitas pessoas, homens em especial, não conseguem disfarçar o seu desconforto com a minha presença, relevando através de gestos e palavras sutis, uma firme determinação de manter uma segura distância social em relação a mim.
7. Como isso só acontece, repito, entre pessoas que já sabem antecipadamente da minha condição transgênera ou que me conheceram em outra categoria de gênero, devo concluir que o simples conhecimento de que alguém é transgênero muda inteiramente o tratamento que lhe vai ser dispensado por essas pessoas.
8. Há muito tempo me acostumei com a ideia de que, embora eu seja alguém com pleno domínio de mim, com bom raciocínio, boa sensibilidade e um senso de coletividade bastante acentuado, para a sociedade em que vivo eu NÃO SOU UMA PESSOA NORMAL.
9. Sociologicamente, pessoas NORMAIS são aquelas que agem de acordo com a NORMA. Pessoas não-normais, diferentes ou anormais são aquelas que agem fora da norma.
10. Emile Durkheim, fundador da sociologia, definiu as NORMAS como FATOS SOCIAIS, ou seja, regras gerais que fundamentam a vida em sociedade. As NORMAS são o ESTATUTO SOCIAL que rege a conduta de cada um e de todos os indivíduos numa dada sociedade, numa dada época.
11. As NORMAS, que são absolutamente gerais e coercitivas, atuam como forças modeladoras e moderadoras da conduta de todos os indivíduos.
12. A adesão à norma não se dá de maneira espontânea e muito menos é herdada geneticamente. Ao contrário, é fruto de um longo e penoso APRENDIZADO SOCIAL (leia-se COERÇÃO SOCIAL). Como afirmou Simone de Beauvoir, ninguém nasce mulher: aprende a ser.
13. Uma vez que é regida por uma força exterior de natureza coletiva, a chamada consciência coletiva, a NORMA tem caráter de obrigatoriedade para todos, especificando o que é CERTO e o que é ERRADO, o que é PERMITIDO e o que é PROIBIDO, o que é BOM e o que é MAU, num binarismo sem fim, não podendo ser modificada pela ação individual isolada.
14. NORMAIS, portanto, são aqueles que se enquadram e que seguem as NORMAS, sendo por isso reconhecidos, enaltecidos e recompensados, lembrando que na maioria dos casos a recompensa é tão somente a NÃO-PUNIÇÃO. Ao contrário, aqueles que fogem às NORMAS são duramente reprimidos, rechaçados e punidos. Em resumo, a norma premia a conduta normal da mesma forma que pune com rigor a conduta anormal, isto é, a conduta FORA DA NORMA.
15. Como demonstrou o sociológico canadense Erving Goffman na sua obra clássica de 1963 “Estigma: Notas sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada”, AS PESSOAS FORA DA NORMA, OS DIFERENTES, OS ESTRANHOS, OS ANORMAIS são marcados por ESTIGMA SOCIAL, que ele define como marca ou sinal que aponta o seu portador como desqualificado ou menos valorizado para o CONVÍVIO SOCIAL PLENO.
16. O interessante é que o ESTIGMA não só serve para DEPRECIAR A PESSOA DIFERENTE, fora da norma, mas, SOBRETUDO PARA CONFIRMAR E REAFIRMAR A NORMALIDADE do outro. Eu SÓ POSSO ME SENTIR NORMAL diante da existência de ALGUÉM NÃO NORMAL.
17. Segundo Goffman, a pessoa estigmatizada é alguém que carrega as marcas de ser diferente do que dispõem as normas, de estar portanto fora das normas, de ser portanto alguém não normal, alguém anormal, portanto social, política e economicamente menos desejável, que não tem um lugar social que a habilite a uma vida vivível, lembrando Judith Butler ou, pior ainda, uma ABJEÇÃO, um MONSTRO ABJETO, feio, sujo e sem nenhuma dignidade, como mostrado por Julia Kristeva em sua obra The Powers of Horror (1982).
18. Em síntese, o ESTIGMA FAZ COM QUE A PESSOA SEJA VISTA como alguém degradado, estragado, diminuído e sem importância na sociedade.
19. “Eu pequei porque havia a NORMA; mudem a NORMA que eu paro de pecar”, afirma Paulo de Tarso na sua epístola aos Romanos (Romanos 7:7). Mas ele ou qualquer uma de nós também poderia ter dito eu fui considerada doente porque não me enquadrei nas normas de conduta da sociedade. Ou ainda, mesmo sem ter cometido crime algum, eu fiquei sem a proteção da lei por ter sido considerada infratora das NORMAS DE CONDUTA da sociedade.
20. Simplificadamente, eu quis mostrar acima as três formas clássicas que, segundo Foucault, a sociedade usa para PUNIR PESSOAS INFRATORAS DAS SUAS NORMAS DE CONDUTA (OU CRIAR ESTIGMA). São elas: a PATOLOGIZAÇÃO, a JUDICIALIZAÇÃO e a PECAMINOSIDADE dos atos da pessoa.
21. Como ele nos mostrou ao longo de toda a sua vasta obra, a criação de CORPOS DÓCEIS ou PESSOAS NORMAIS só pôde ser feita através do bio-poder, responsável pela patologização e “tratamento corretivo” da pessoa “anormal”; através do poder jurídico-institucional, com a criação de legislação punitiva ou com a completa omissão de legislação protetora do “diferente” e através do poder eclesiástico, estimulador da culpa resultante do cometimento do pecado de ser e/ou agir diferentemente do que está prescrito nas NORMAS.
22. A principal conclusão que eu gostaria que vocês chegassem até aqui, a partir do material que eu lhes trouxe é de que a “diferença”, ou seja, a “anormalidade”, na forma de patologia, pecado ou infração jurídica, NÃO EXISTE APRIORISTICAMENTE na sociedade MAS É CRIADA A PARTIR DAS NORMAS DE CONDUTA SOCIAL INSTITUCIONALIZADAS.
23. O ESTIGMA não existe a priori nas pessoas, mas é imposto a elas em função do fato de não serem ou estarem em consonância com as NORMAS.
24. O indivíduo é estigmatizado não por causa de alguma condição que lhe é intrínseca – por exemplo, a cor da pele ou sua orientação sexual, mas por causa da sua INADEQUAÇÃO ÀS NORMAS DE FUNCIONAMENTO ESTABELECIDAS NA SOCIEDADE, que FOUCAULT chamou de DISPOSITIVOS.
25. Segundo Foucault, um dispositivo é um conjunto muito amplo e heterogêneo de discursos, práticas, instituições, códigos, leis, procedimentos, valores morais, etc., que têm a função estratégica de NORMALIZAR e NORMATIZAR as relações dos indivíduos e grupos dentro da sociedade.
26. A partir daqui, vou me deter particularmente na análise do DISPOSITIVO DE GÊNERO, aquele que rege as relações entre pessoas e grupos em função exclusiva da genitália, de macho ou de fêmea, apresentada pelos indivíduos ao nascer.
27. Como é construído a partir da genitália das pessoas, o DISPOSITIVO DE GÊNERO reconhece, legitima, normaliza e normatiza apenas duas e somente duas categorias de gênero: HOMEM ou gênero masculino e MULHER ou gênero feminino.
28. De maneira inexorável, o DISPOSITIVO DE GÊNERO determina que apenas MACHOS de nascimento podem ser enquadrados como HOMENS ao nascer, assim como apenas FÊMEAS de nascimento podem ser enquadradas como mulheres.
29. Essas pessoas que, teoricamente, constituem a maioria da população, são chamadas de CISGÊNERAS e consideradas NORMAIS, uma vez que se enquadram ao determinismo do dispositivo binário de gênero e, portanto, estão “isentas de qualquer tipo de patologia, pecado ou transgressão da ordem”.
30. AO CONTRÁRIO, as pessoas que NÃO SE ENQUADRAM no DETERMINISMO BINÁRIO de gênero são consideradas ANORMAIS, SÓCIO-DESVIANTES, TRANSGRESSORAS DA ORDEM DE GÊNERO ou, abreviadamente, TRANSGÊNERAS. No domínio do biopoder, passam a ser consideradas doentes, portadoras de patologias físicas e/ou mentais que precisam ser “curadas” pela medicina. No domínio eclesiástico, passam a ser consideradas “pecadoras”, passíveis de graves punições divinas. No domínio jurídico, passam a ser vistas como delinquentes, ou seja, descumpridoras das leis e das normas em vigor.
31. É IMPORTANTÍSSIMO OBSERVAR QUE TRANSGÊNERO NÃO É A RIGOR UMA IDENTIDADE DE GÊNERO, como é muitas vezes tratada, disputando espaço com transidentidades como transexual e travesti, mas uma CONDIÇÃO sócio-jurídica de inadequação ao dispositivo binário de gênero.
35. Tomando o método de desconstrução proposto por Jacques Derrida, Joan Scott desconstruiu, de modo muito bem sucedido, grandes vícios do pensamento ocidental baseados na crença de uma oposição natural, universal e atemporal entre homem e mulher.
36. Influenciada por Foucault, Scott entende gênero como um saber sobre as diferenças sexuais. E, havendo uma relação inseparável entre saber e poder, gênero estaria imbricado nas relações de poder, sendo, na sua ótica, o primeiro estágio de estruturação e institucionalização dessas relações. Ou seja, gênero está na própria gênese da sociedade civilizada.
37. A partir desses referenciais, Scott conclui que gênero é uma percepção DA ORDEM VIGENTE sobre as diferenças sexuais, que estrutura e hierarquiza essas diferenças dentro de uma maneira de pensar engessada e dual.
38. Scott não nega que existem diferenças entre os corpos sexuados, mas acentua que a questão não está nos corpos, mas nas formas como se constroem significados culturais para as diferenças corporais.
39. Apesar do conceito de gênero, como já afirmei antes, não ter feito parte dos primórdios da psicanálise, é surpreendente que Freud tenha pensado e dito algo muito parecido com o que hoje chamamos de gênero na sua Conferência XXXIII, Sobre A Feminilidade, de 1932.
“Quando vocês encontram uma pessoa, a primeira distinção que fazem é se ele é ‘homem ou mulher. E os senhores estão habituados a fazer essa distinção com certeza total de que não se enganam. A ciência anatômica compartilha dessa certeza dos senhores num único ponto -mas não mais do que isso. O produto sexual masculino, o espermatozóide, e seu veículo são masculinos; o óvulo e o organismo que o abriga são femininos. Em ambos os sexos, formaram-se órgãos que servem exclusivamente às funções sexuais; provavelmente desenvolveram-se da mesma disposição [inata] em duas formas diferentes. Ademais disso, em ambos os sexos os outros órgãos, as formas e tecidos corporais mostram a influência do sexo do indivíduo, mas isto é inconstante e sua quantidade é muito variável; são aquilo que se conhece como características sexuais secundárias”.
Masculino e feminino se misturam num indivíduo em proporções altamente desiguais, estando sujeitos a flutuações muito amplas. Apenas uma espécie de produto sexual — óvulos ou sêmen — está presente numa pessoa, de modo a caracteriza-la como homem ou mulher. Os senhores, contudo, não poderão senão ter dúvidas quanto à importância decisiva desses elementos – óvulos e espermatozoides – na constituição da masculinidade ou da feminilidade. Como se dá essa constituição, é uma característica desconhecida que foge do alcance da anatomia.
Quanto mais se afastarem da estreita esfera sexual, mais óbvio se lhes tornará o ‘erro de superposição’. Devemos, contudo, nos acautelar nesse ponto, para não subestimar a influência dos costumes sociais."
Referências
DERRIDA, Jacques. Gramatologia. São Paulo: Editora Perspectiva, 1973.
DURKHEIM, Emile. As Regras do Método Sociológico. São Paulo : Martins Fontes, 2007.
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.
FREUD, Sigmund. Conferência XXXIII, Sobre A Feminilidade. 1932
GOFFMAN, Erving. Estigma – Nota Sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada. Rio de Janeiro : Zahar, 1980.
IANNINI, Gilson (org.). Caro Dr. Freud – Respostas do século XXI a uma carta sobre homossexualidade. B. Horizonte : Autêntica Editora, 2019.
KRISTEVA, Julia. Powers of Horror: An Essay on Abjection. New York : Columbia University Press, 1982.
LANZ, Letícia. O Corpo da Roupa – Uma introdução aos Estudos Transgêneros. Curitiba : Transgente, 2017.
SCOTT, Joan Wallach. “Gênero: Uma Categoria Útil de Análise Histórica”. Educação e Realidade. Porto Alegre, vol. 20, nº 2, jul./dez. 1995, pp. 71-79.
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