segunda-feira, 3 de maio de 2021

Mudança de nome civil e igualdade de direitos das pessoas transgêneras

        Poder fazer a retificação do nome civil na minha certidão de nascimento significou um enorme ganho pessoal em termos de liberdade de movimento e uma reconquista dos meus direitos de cidadã que estiveram marcadamente obstruídos desde a minha transição.
        A sociedade está estruturada em cima do pilar do dispositivo de gênero, que classifica machos e fêmeas biológicos em homens e mulheres em virtude exclusivamente do órgão genital que apresentam ao nascer. Tudo nesse mundo depende da pessoa apresentar um sexo e um nome compatível com a sua aparência no dia-a-dia. Na medida em que uma pessoa transgênera pode exibir um documento compatível com a sua expressão de gênero no dia-a-dia, sua vida se torna infinitamente mais fácil, igual à de qualquer pessoa cisgênera, tendo, portanto, pelo menos teoricamente, acesso a todos os dispositivos e processos sociopolíticos garantidos a homens e mulheres na nossa sociedade. Teoricamente porque, a despeito do documento compatível, o comportamento da sociedade em relação a pessoas transgêneras ainda é de “pé atrás”, de repúdio, invisibilização, violência e exclusão. Mas esse é outro capítulo da novela trans.
        A aprovação do Supremo Tribunal Federal (STF), em 2018, possibilitou transgêneros a alterarem o nome biológico e o gênero diretamente nos Cartórios, tornando o processo menos burocrático. Essa foi uma mudança fundamental que, a rigor, desjudicializou, desburocratizou e, ainda que não fosse essa a intenção, despatologizou, num único lance, a condição transgênera no Brasil. Com uma simples ida ao cartório, é possível trocar de nome e de sexo, sem qualquer interferência médica ou jurídica.
        Fiz a minha alteração ainda no ano de 2018 e foi muito simples e rápido, sem nenhum entrave burocrático além das certidões exigidas. Entretanto, boa parte da população transgênera, por falta de informação ou condições financeiras (o processo é dispendioso), ainda não tiveram acesso pleno aos benefícios desse direito. Mas o problema não para na simples mudança do nome civil. A partir da mudança, é necessário percorrer um longo caminho – um verdadeiro calvário – para mudar todos os registros e documentação da pessoa. Um processo longo, cansativo e oneroso.
        Os Provimento nº 73/2018 e o Provimento nº 1/2021 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) consideraram os princípios constitucionais da dignidade, da liberdade e da igualdade material, bem como a garantia do direito à autodeterminação da pessoa em relação ao próprio gênero. Como isso se dá na prática? Em sua opinião, os transgêneros têm estes princípios garantidos?
        Essa “garantia” não é, infelizmente, um dado jurídico estável, uma vez que não resultou de uma legislação específica, votada e aprovada pelo congresso nacional e sancionada pela presidência da república, mas de uma decisão do STF, a partir da interpretação da legislação já existente. Assim, na prática, a qualquer momento, o congresso nacional poderá por em votação uma pauta anti-progressista e anti-direitos humanos que, se vencedora, poderá sobrepor-se inteiramente à interpretação da lei de forma favorável à população transgênera, ora em vigor. Por isso mesmo, a mobilização pelos direitos da população transgênera deve continuar, tanto para barrar pautas anti-trans, e há muitas no congresso, quanto para tentar a aprovação de uma legislação específica.
        Antes desses provimentos, era um tormento sem fim uma pessoa transgênera conseguir a alteração do nome civil nos seus documentos. Alteração do sexo, então, nem se fala. Era necessário vencer uma imensa burocracia médico-jurídica que levava, em média, cerca de dois a cinco anos para uma pessoa comum, sem muitos recursos, já que uma pessoa trans com dinheiro conseguia romper a burocracia existente em questão de meses. Hoje, como eu já disse, com uma simples ida ao cartório, aliás como deve ser, a pessoa transgênera alterar nome civil e sexo, sem maiores interveniências jurídicas ou médicas.
        Evidentemente, a questão da igualdade de direitos das pessoas transgêneras é muito mais ampla e profunda do que a autorização, muito esperada e muito bem vinda, para a mudança do nome civil livre de longos processos jurídicos e médicos.
        Inúmeros fatores estruturais pesam para o atingimento da plena igualdade de direitos entre pessoas transgêneras e pessoas cisgêneras na sociedade. Em primeiro lugar, pesa muito os cortes transversais do perfil de cada pessoa transgênera. Por exemplo, pessoas trans, ricas, são infinitamente menos destratadas, rejeitadas, invisibilizadas, violentadas e excluídas do que pessoas trans pobres, pretas e periféricas. Igualdade, no nosso país, é muito mais um problema de ampla desigualdade socioeconômica da população do que simplesmente uma simples oposição entre pessoas cis e trans.
        Infelizmente, o Brasil ainda é o país que mais mata pessoas trans pela persistente existência de um machismo estrutural, característica tosca e desprezível do patriarcalismo que ainda vigora na nossa sociedade. Um machismo hipócrita que, de um lado, patrocina a ampla prostituição de pessoas transgêneras, buscando incessantemente os seus serviços na calada da noite. E que também é campeão do consumo de pornografia transgênera na internet. Mas que, de outro, tenta livrar-se da culpa de um comportamento por eles mesmos considerado impróprio para “machos”, vilipendiando, violentando e matando pessoas transgêneras, sem dó nem piedade.
        Outro sério entrave, que considero tão ou mais importante que o anterior, é a falta de profissionais de saúde que saiba ao menos o que é uma pessoa transgênera e como incluí-la nos procedimentos habituais das unidades de atendimento, hospitais e consultórios. A transgeneridade não é nem ao menos mencionada na absoluta maioria dos currículos dos cursos de medicina, enfermagem e psicologia do país.
        O último grande - e sério – entrave que desejo mencionar, é a reserva e “rejeição estrutural” que a sociedade ainda possui com relação a pessoas transgêneras e que promove, de um lado, o apagamento dessas pessoas e, de outro, uma imensa reserva e distanciamento social no contato com elas no dia a dia. Essas providências jurídicas trouxeram inegavelmente mais igualdade de direitos para as pessoas transgêneras em relação à população cisgênera.
        Em termos amplos, o que a população transgênera espera, necessita e merece, na condição de cidadãs e cidadãos perfeitamente normais e legais desse país, é serem aceitas como parte da normalidade sociocultural de qualquer comunidade. Que não exista mais essa separação espúria entre pessoas cisgêneras e pessoas transgêneras. Porque, se daqui, digamos, vinte anos, ainda for necessário movimentos em defesa dos direitos de pessoas transgêneras é sinal que todo o nosso esforço de militância, agora, no presente, além de não funcionar, deu errado. Aliás, o que eu espero mesmo é que não haja mais essa coisa estúpida de gênero, que só serve para dividir, hierarquizar e controlar os seres humanos em função do seu órgão genital. 

 


Nenhum comentário: