terça-feira, 8 de março de 2022

Armário: o refúgio que é prisão

Viver no armário ainda é considerado como única alternativa para um grupo bastante expressivo de pessoas LGBT+. Num contexto sociopolítico-cultural altamente LGBTfóbico como tem sido o Brasil de hoje, o armário se apresenta como forma segura e até desejável de existência. Mas não é. Não há nenhum conforto ou dignidade em se viver armarizado, trancado em uma prisão auto-imposta, onde não existem direitos nem cidadania plena.

Antítese de uma vida assumida e autêntica, baseada na verdade, na integridade, na dignidade e na transparência de se ser a pessoa que se é, o armário é uma prisão mental para quem, no dia-a-dia, vive um personagem que definitivamente não representa a sua essência humana. No armário, a espontaneidade da vida é substituída por uma autovigilância permanente e contínua, em que todas as ações, contatos e movimentos diários da pessoa devem ser rigorosamente medidos e controlados, a fim de que jamais expressarem nenhum traço da verdadeira identidade de gênero e/ou da orientação sexual que a pessoa quer ocultar até de si própria.

Do ponto de vista psicossocial, armário é tão somente a projeção da mente do indivíduo armarizado, fantasma onipresente de uma sociedade que força a pessoa a agir contra os seus próprios impulsos e desejos, a ser escrava de normas e convenções de sexualidade e gênero totalmente incompatíveis com a sua própria condição humana. Mas, em sua cegueira para defender-se até de si própria, a pessoa se nega em reconhecer que o armário não é seu protetor, mas seu grande carrasco, que a obriga, sem piedade, a manter seu compromisso com uma ordem social que a rejeitaria e a excluiria de todas as formas, caso ela manifestasse publicamente a sua identidade de gênero e/ou orientação sexual socialmente transgressivas.

Armário implica em a pessoa viver permanentemente dividida em duas: a pessoa que ela realmente é e a pessoa que ela quer (ou precisa...) fazer os outros acreditarem que ela seja. Nesse sentido, armário pode ser tomado como um eufemismo para a escolha e a adesão do indivíduo a uma prática de vida construída a partir do disfarce, da mentira, do segredo, da dissimulação, da identidade dupla, em detrimento da expressão pública aberta e sem simulacros de quem o indivíduo é.

O armário impõe à pessoa a tarefa de estar em permanente vigília, constantemente alerta para “não dar pinta”, para “não dar bandeira”. Em seu auto-exílio do mundo real, a pessoa armarizada desenvolve uma absurda mania de perseguição, fazendo com que as barreiras de proteção que ergueu em torno de si mesma a fim de se sentir protegida transformem-se em muralhas intransponíveis para qualquer tipo de contato ou ajuda do mundo exterior.

Com uma visão envergonhada, acovardada, culposa e inteiramente distorcida de si própria, a pessoa armarizada evita frequentar lugares e/ou fazer coisas que, na cabeça dela, possam comprometê-la ou até denunciá-la, assim como qualquer tipo de comunicação com pessoas que, também na cabeça dela, possam sugerir a existência da sua identidade oculta. Tentando desesperadamente proteger-se de pessoas que poderiam evocar sua identidade de gênero ou orientação sexual sócio-divergente, a pessoa armarizada se priva de fazer contato com pessoas e/ou grupos que poderiam ajudá-la tremendamente a sair do armário ou, pelo menos, a viver nele de modo mais digno e confortável (se é que se pode falar em conforto e dignidade quando se vive no armário...).

Em um mundo tão violento e ameaçador contra quem fere suas normas de conduta de gênero e/ou de orientação sexual, a escolha do armário parece ser a alternativa mais correta e atraente, por mostrar-se tão mais cômoda e segura. Aos poucos, contudo, o armário começa a mostrar sua face sombria, que obriga a pessoa armarizada a praticar atos eticamente reprováveis como enganar, mentir, ludibriar, fingir, disfarçar e negar. Não é à toa que, popularmente, armário é sinônimo de covardia e incapacidade de assumir ser plenamente a pessoa que se é.

Mas o maior problema do armário é que ele apenas abafa, sem resolver, os conflitos íntimos de quem nele se refugia, mantendo fortemente reprimidas e recalcadas algumas das características mais autênticas e naturais da pessoa, traços fundamentais da personalidade que ficam indefinidamente à espera da oportunidade de se expressarem livremente no mundo exterior.

Armário não defende nem protege ninguém e, a longo prazo, só piora ainda mais a qualidade de vida dos seus “moradores”, obrigando-os a um imenso gasto de energia para criar e manter uma imagem pública aceitável, com a qual podem desfrutar do apreço e do respeito que, de outra forma, acreditam, lhes seria inteiramente confiscados ou sonegados pelo fato de transgredirem as normas vigente de gênero e/ou de orientação sexual.

Através da sedutora armadilha do armário, a sociedade mantém controle sobre manifestações de gênero e de sexualidade fora das normas cishéteras. É assim que, em nome de se protegerem da possível rejeição, violência e/ou exclusão familiar e social, pessoas LGBT+ armarizadas contribuem, involuntariamente, para a manutenção da ordem cisgênera-heterossexual-machista que tanto as machuca e oprime, participando ativamente das suas instituições (como as formas tradicionais de casamento e de constituição de famílias) e comungando dos seus valores (como a assimetria entre o binário de gêneros), que só servem para fazê-las sofrer e se sentirem socialmente excluídas e inadequadas, ainda que, na realidade, não o sejam.

Longe, portanto, de ser um equipamento de proteção individual para quem nele se refugia, tentando viver seus desejos e sua intimidade sem a permanente ameaça de bullying, o armário é peça-chave de um gigantesco aparelho repressivo-coercitivo das expressões de identidade de gênero e orientação sexual fora do binômio masculino-feminino-heterossexual-cisgênero.

Mas se, por um lado, viver no armário pode ser uma clara demonstração de fraqueza e covardia, por outro não se pode culpar ninguém que optar por esse caminho. Diante do recrudescimento do reacionarismo fascista e do fanatismo religioso, em pleno século XXI, podem ser, sim, extremamente graves e dolorosas as perdas, punições e retaliações impostas a quem assume sua condição de pessoa LGBT+ diante da família, da escola, do trabalho e de outros grupos sociais de que participa. Desprezo, zombaria, humilhação, rejeição, exclusão e violência, além de penúria emocional e financeira, continuam sendo ocorrências altamente previsíveis na vida de quem se assume publicamente como pessoa LGBT+.

Embora o armário seja tido como mecanismo de autoproteção, na realidade ele só aprisiona, escraviza e vicia, acarretando perdas altamente comprometedoras para a saúde psíquica e para a qualidade de vida das pessoas LGBT+ que nele pensam estar instaladas em total segurança.

A população LGBT+ precisa aprender a ver o armário como instrumento de opressão, de exclusão, de preconceito e discriminação, em vez de aceitá-lo passivamente como uma espécie de refúgio seguro. É justamente por existir tanta gente LGBT+ resignada em viver humilhada e acuada no armário que a sociedade pode exibir orgulhosamente a sua hipócrita fachada de “normalidade”, a grande farsa de um mundo “ideal”, de esmagadora maioria “heteressexual-cisgênera”. Corpos dóceis e obedientes, como diria Foucault, perfeitamente ajustados às normas de conduta de gênero e de orientação sexual em vigor.

Por mais transtornos que o processo de sair do armário possa causar na vida de uma pessoa LGBT+, passar toda uma existência dentro dele é infinitamente mais cruel e desgastante do que enfrentar o mundo exterior. Com a sensível diferença de que os esforços para sair do armário sempre recompensarão a pessoa com ganhos expressivos em termos de ganho de auto-estima, crescimento pessoal, liberdade, equilíbrio existencial e consistência como ser humano, ao passo que permanecer indefinidamente dentro dele representa apenas um consumo crescente de energia que leva tão somente a mais estagnação e retrocesso, mais conflitos existenciais e mais ansiedade e depressão.

Sair do armário - e permanecer fora dele, o que pode ser ainda mais difícil do que propriamente sair - é uma forma de resistência e de autoafirmação do direito de livre expressão da identidade de gênero e da orientação sexual dos indivíduos, direitos esses que estão protegidos não apenas pela Constituição mas por uma série de interpretações da Constituição, favoráveis à população LGBT+, promulgados pelo STF – Supremo Tribunal Federal.

Por mais complicada e difícil que seja sair do armário, essa empreitada representará sempre um grande salto na vida de pessoas que, de outra forma, estariam condenadas a viverem escondidas para sempre nos seus armários, apavoradas com a possibilidade de serem descobertas ou denunciadas.

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