domingo, 6 de março de 2022

Civilização, culpa e reparação

Como afirmou Freud, a condição número um para a existência da sociedade é a repressão dos instintos: a sociedade (ocidental, como ele postulou, mas também a oriental, certamente) se desenvolveu a partir da repressão da libido (a poderosíssima “energia” vital), obrigando todos os indivíduos a abrirem mão dos seus impulsos em nome da segurança de viver sob o império da lei e da ordem. 

O resultado dessa gigantesca e generalizada repressão de todos (por todos) se chama culpa. Sem culpa, ninguém se torna “pessoa” e “cidadã”. Nenhum indivíduo está apto a viver em sociedade a menos que tenha seus instintos naturais “domados” pela cultura, ou seja, a menos que seja “dobrado” pela sociedade, o que é feito através do sentimento de culpa, que é o medo e a vergonha que a pessoa desenvolve de não corresponder às exigências de conduta que lhes são impostas desde a mais tenra infância até o último suspiro.

Através da culpa, o império dos “instintos naturais” é substituído pela norma, pelos “valores” e “costumes” que as elites dominantes impõem sobre a conduta de todas as pessoas numa determinada época e lugar. Em resumo, sem culpa não existiria sociedade, pois ela é o fundamento e a base de todo o processo civilizatório. “Educação” nada mais é do que um eufemismo para “socialização forçada”, esse processo permanente e contínuo de repressão e controle dos indivíduos a fim de que eles se mantenham fieis, atentos e disciplinados aos regulamentos da sociedade. A fim de que sejam “corpos dóceis”, como afirmou Foucault.

Qualquer conduta individual que fuja dos parâmetros ordenadores da sociedade significa não só a imediata exposição da pessoa transgressora aos mecanismos de dissuasão e punição da sociedade, como também ao surgimento íntimo de um terrível e avassalador sentimento de culpa. 

Na (minha) prática psicanalítica, a culpa ocupa um lugar de absoluto destaque. Quer fazer a pessoa entender de onde vem o seu sofrimento sociopsíquico, faça-a recordar, repetir e elaborar as situações da sua vida pelas quais se sentiu – e ainda se sente – culpada. As vezes em que odiou pai e mãe, em vez de amá-los incondicionalmente, como exigem as normas de convívio entre filhas e pais. As vezes em que fracassou numa empreitada qualquer – de passar de ano na escola a conseguir uma promoção no trabalho – em vez de ser uma “ganhadora” e tornando-se, muito pelo contrário, uma “perdedora”, condição absolutamente execrável diante da norma social. As vezes em que foi uma mãe que não “cuidou” dos filhos ou, pior, em que quis desesperadamente não tê-los tido, ou mesmo que praticou o aborto (o pior de todos os crimes, segundo os fundamentalistas de plantão), expondo-se ao vexame social de ser uma “megera”, incapaz de desempenhar o papel tão “sublime e supremo”...

Minhas pesquisas, junto como minha experiência prática, me levam a afirmar como pouquíssima margem de dúvida, que noventa e nove vírgula nove por cento de “doenças”, tão “antigas” como a histeria de conversão ou tão “modernas” como a depressão, a síndrome do pânico e o “burn-out”, têm sua origem e desenvolvimento unicamente na culpa. 

Tenho a péssima incumbência de dizer que o sofrimento sociopsíquico continuará, firme e forte, apesar de todo e qualquer “tratamento medicamentoso”. O relaxamento, sossego, recentramento e paz interior só serão alcançados quando a pessoa entender a natureza social da sua culpa, quando conseguir localizar os focos de culpa em sua própria vida e quando, especialmente, conseguir elaborar essas culpas, perdoando-se por não ter eventualmente correspondido às exigências, reais ou imaginárias, que o mundo e as relações com as pessoas lhes impuseram num determinado momento das suas vidas. 

Isso vale tanto para um crossdresser (travesti de armário), um gay ou uma lésbica, chorando suas pitangas por não conseguirem corresponder às normas vigentes de identidade de gênero e orientação sexual, quanto para alguém em situação de luto permanente, por não conseguir se perdoar por não ter dado “carinho”, “conforto” e apoio a um ente querido no final da sua vida.

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